Houve um momento na história do samba que um ritmo dançante tomou conta das boates do Rio de Janeiro com onomatopeias como telecoteco, esquindô e ziriguidum e tirou, literalmente, os frequentadores para dançar. Compositores começaram a inserir mais suingue no gênero e levaram com eles, para dentro das casas noturnas, o órgão e instrumentos elétricos que ajudavam a dar ao samba uma sonoridade mais embalada. Era praticamente um movimento musical, mas ele nunca foi normatizado ou encarado como tal. E muito menos estudado, embora tenha chegado a virar verbete de dicionário.
O sambalanço invadiu o Rio dos anos 1950 e 1960, mesmo momento em que a Bossa Nova tomava conta das casas dos jovens da Zona Sul com letras mais contemplativas e intelectualizadas. O pesquisador e crítico Tárik de Souza era adolescente quando o sambalanço começou a se espalhar e sempre foi fã dos compositores. Há 15 anos, ele decidiu pesquisar a fundo e agora lança Sambalanço, a bossa que dança — um mosaico, livro faz justiça ao movimento cuja história acabou ofuscada pelo interesse sem fim pela pela Bossa Nova.
O projeto é lançado pelo selo Kuarup com dois volumes de entrevistas realizadas entre 2009 e 2014 pelo pesquisador para o programa MPBambas, do Canal Brasil. “Já como jornalista e crítico de música estranhei que (a história do sambalanço) não tivesse sido registrada por ninguém. E aí me dei essa tarefa de fazer esse registro, até porque fui fã de vários daqueles artistas que estouraram naquela época, acompanhei tudo”, conta. O livro vem como um aprofundamento da história do samba no ano em que o gênero comemora 100 anos.
Sucessos
O sambalanço surgiu na mesma época que a bossa nova e os dois seguiram em paralelo até o fim dos anos 1960, quando começaram a murchar. Havia uma certa rivalidade entre os dois, embora alguns artistas de um lado tenham bebido nos ritmos do outro lado. Para Tárik, esse gingado trouxe novas possibilidades para o samba
No livro, além de um ensaio no qual faz uma análise dos principais compositores — nomes como Orlandivo, Miltinho, Djalma Ferreira, Ed Lincoln e Celso Murilo — e seus intérpretes — e nessa lista entram de Inezita Barroso e Dolores Duran a Elza Soares e Isaurinha Garcia —, Tárik incluiu uma discografia com 80 títulos dos discos de sambalanço mais importantes da indústria fonográfica. Um capítulo com verbetes dedicados a 13 artistas do gênero ajuda o leitor a se situar, mas é nas entrevistas que está o material mais interessante do livro. Olrandivo, morto este ano, em 8 de fevereiro, conta como convenceu João Donato, um dos precursores da bossa nova, a gravar Sambaflex, um clássico do sambalanço. O músico foi o inventor do samba de chave e estourou com Bolinha de sabão. Mais tarde, gravaria com Jorge Ben os sucessos Por causa de você menina e Mas que nada.
Na música título de Sambalanço, Orlandivo dá uma das melhores definições do movimento: “Sei muito bem que o samba tá misturado/desse tempero sai um samba legal/é samba rock, funk samba de jazz/é sambalanço samba flex demais”. Entrevistas com Durval Ferreira, que se dividiu entre a bossa nova do Tamba Trio e o sambalanço, Elza Soares, que militava em todos os lados e viu até o marido Garrincha compor um samba balançado, João Donato, responsável pelos arranjos do disco de Orlandivo, Dóris Monteiro e Eumir Deodato, entre outros, trazem histórias que ajudam a delinear o movimento.
Conversas
Em Mpbambas, Tárik compila 14 entrevistas com grandes nomes da música brasileira realizadas para o programa de mesmo nome do Canal Brasil. Na televisão, as entrevistas não duravam mais que 30 minutos, mas na pré-produção podiam chegar a duas horas. No livro, as conversas estão transcritas na íntegra e trazem momentos inéditos. Entre eles está uma entrevista de Chico Anysio como compositor, a única concedida nessa condição, segundo Tárik.
A fala do humorista traz as memórias das parcerias com Dolores Duran, Nonato Buzar e Luiz Gonzaga
Sambalanço, a bossa que dança — um mosaico
De Tárik de Souza. Kuarup, 272 páginas. R$ 35,90
mpbambas — Histórias e memórias da canção brasileira
De Tárik de Souza. Kuarup, dois volumes. R$ 39,90 (cada)
ENTREVISTA // Tárik de Souza
Qual foi a dificuldade de delimitar o sambalanço, já que nunca chegou a ser estudado enquanto movimento?
A dificuldade é que foi um movimento que surgiu junto com a bossa nova e que trocou figurinhas com a bossa nova. O Durval Ferreira, por exemplo, foi um grande compositor da bossa nova, atuou dentro do Tamba Trio e, ao mesmo tempo, foi guitarrista do Ed Lincoln, que começou como baixista tocando com Luiz Eça, que depois faria o Tamba Trio. É um pessoal que vem dessa mesma origem da bossa nova e criou um movimento diferente. Tem uma entrevista bastante elucidaditiva com o João Roberto Kelly, que é um carioca da Zona Sul e que estudou piano erudito, que tinha tudo para ser um bossanovista. Perguntei por que não aderiu à bossa nova e ele falou que a bossa nova não tinha o balanço que queria. Esse veneno a mais, esse molho a mais, esse ritmo a mais é justamente o sambalanço, que inclusive incorporou muita coisa caribenha, com atabaques, para aumentar o balanço. Foi um período onde a música utilizou muitas onomatopeias para ressignificar essa coisa do ritmo, com esquindô, telecoteco, ziriguidum. Não havia nada teórico escrito sobre isso.
Havia alguma rivalidade entre o sambalanço e a bossa nova?
Tem uma rivalidade e isso está bem patente em várias entrevistas do livro. Ao mesmo tempo é curioso que o sambalanço surge um pouco antes da bossa nova, o primeiro é de 1951, do Djalma Ferreira, mas ele pega fogo mesmo a partir do final dos anos 1950, exatamente na época que a bossa nova estourou. E ele começa a perder força exatamente em meados dos anos 1960, quando a bossa nova também perdeu força. São dois movimentos quase como se fossem interfaces, a bossa nova mais intelectualizada, com mais cuidado com a harmonia. E o sambalanço com mais ênfase no ritmo.
E por que surgiu exatamente nessa época?
A arte, você não tem muita explicação de porque ela surge, ela aparece junto a uma série de fatores e, de repente, surge aquele movimento, como aconteceu com o sambalanço. Houve essa questão da mudança urbana, as boates passaram a concentrar o pessoal que dançava, que foram das gafieiras para as boates. E aí as boates incorporaram esse instrumento elétrico que é o órgão, um instrumento bom para pequenos lugares porque tem uma sonoridade forte, alta..
Podemos dizer que quem fazia samba fazia sambalanço também, ou que quem fazia bossa nova também fazia sambalanço?
Não. As coisas são separadas. Fiz questão de colocar uma entrevista com João Donato, que foi um dos precursores da bossa nova, mostrando até que ponto ele tinha ligação com essa coisa de sambalanço. Algumas músicas dele são verdadeiros sambalanços, mas são poucas. A grande maioria são tendendo mais para o jazz, mais elaborada harmonicamente. O Walter Santos, que foi um compositor espetacular fez uma música que, para mim, é sensacional e diz o seguinte “bossa nova ou samba jazz, sambalanço ou samba só, o que interessa é que o balanço é bom”. E ele cita todas essas nomenclaturas que surgiram na época e que praticamente colidem umas com as outras. Fiz questão de separar o que é sambalanço do que é bossa nova.
Você fala que o sambalanço surgiu durante um período ufanístico. Esses períodos são bons para a cultura?
Deprimida, é difícil a pessoa criar alguma coisa, então quando há um momento de euforia, com uma ideia de que “agora o Brasil vai dar certo”, aí surgem adesões de tudo quanto é lado, pessoas querendo criar, inovar, fazer coisas novas. Quando o país está muito pra baixo, é mais complicado. Então acho que tem a ver com isso, com o estado de espírito das pessoas e essa época do sambalanço é uma época radiante do Rio de Janeiro. O Rio estava no auge, as pessoas frequentavam as boates. As pessoas saíam e iam direto pra praia, era uma coisa incrível, uma boemia que não existe mais.
Queria que você fizesse um paralelo com o momento que a gente vive e a música que a gente produz hoje.
Houve uma mudança brutal. Nós estamos inaugurando um período pós-industrial que é toda essa questão da internet. Ninguém sabe se a música vai continuar a ser um bem, porque com o streaming, o pagamento feito aos compositores é absolutamente ridículo. Você paga 20 dólares e tem um milhão de músicas à sua disposição. E o compositor vai receber 0,0001 cada vez que a música for acessada. Então não se sabe se a música ainda vai ser viável como produto e como cultura. E a cada dia tem uma coisa nova. Tenho esperança que as pessoas sempre gostem de música, sempre se interessem por música.