Esta foi a pergunta que Marcelo Yuka se fez nos últimos anos. A resposta, ainda que indefinida, surge em forma de disco. Seu primeiro álbum solo, Canções para depois do ódio, poderia esbarrar no rancor. Ex-baterista da banda O Rappa, Yuka viveu uma tragédia pessoal. Em novembro de 2000, o artista carioca foi baleado em uma tentativa de assalto, no Rio de Janeiro. Ficou paraplégico e deprimido. Foi expulso da banda que ajudou a fundar. Candidatou-se, sem sucesso, a vice-prefeito da capital fluminense na chapa de Marcelo Freixo (PSOL).
Onze anos depois de lançar o primeiro e único disco da banda F.U.R.T.O, Sangueaudiência, Yuka reaparece. Em seu novo álbum, mescla a crítica contra o sistema (marca registrada dele) à serenidade em relação ao futuro – uma conquista desde que se converteu ao budismo.
Compositor e cantor recorreu a cinco vocalistas (o coprodutor Bukassa Kabengele, Seu Jorge, Bárbara Mendes, Cibelle e Céu) para dar a Canções para depois do ódio, por mais paradoxal que pareça, um ar de leveza. Isso fica explícito na faixa O movimento da massa, por exemplo. A sonoridade carrega elementos africanos, soul, funk, reggae e rock – jogo de cintura musical tão próprio dos brasileiros.
Com pinceladas expressivas, a capa e o encarte foram criados pelo próprio Yuka. Os tons vibrantes externam a alma desse eterno caçador de respostas.
Canções para depois do ódio é um título que sugere muitas interpretações, sobretudo neste país marcado por polaridades de diferentes esferas, como a política. O discurso de ódio que acompanha essas manifestações pode ter fim?
O ódio não está no ar só no Brasil. Ele está nas ações do Donald Trump, do Jair Bolsonaro, está na dificuldade da Europa de entender sua responsabilidade em relação aos refugiados da África. É endêmico. Ficou bonito ser feio, colocar opiniões radicais forradas em intolerância. Isso está no papo do taxista, está em todo mundo. Uma cultura dada ao novo, como o Brasil, que também esbarra nesse tipo de intolerância, que vejo como o pior sintoma do ódio. Ele começa a ter uma característica social quando querem a redução da maioridade penal, embora o Brasil seja um dos países que mais prendem no mundo. Mesmo assim, querem prender mais ainda, sob uma condição presidiária horrível.
A visão assertiva permeia parte das canções. “É lindo o movimento da massa”, você diz. Consegue ver algo de bonito no futuro brasileiro?
Existe algo positivo em todo o álbum. O fato de você apontar alguma coisa com a qual não concorda é positivo.
Muita gente espera respostas de Canções... O que o disco conta sobre quem é você, hoje em dia?
Ganhei a alcunha de músico com uma atitude política definida e, muitas vezes, as pessoas procuram por isso. Mas esse disco mostra que não é só isso, justamente porque está tudo interligado. Não posso pensar em uma sociedade mais justa se bato na minha mulher, se não respeito meu filho homossexual. Estou mostrando aqui que há outras armas para lutar. Não sou a solução, não tenho as respostas. Acho até que divido mais dúvidas do que respostas. Além disso, não tenho cultura suficiente para isso, o Caetano Veloso e o Gilberto Gil é que deveriam ver para onde vai. Cada vez mais tenho dúvidas.
A música brasileira está aprendendo a reverenciar suas raízes, a africanidade?
Ela sempre fez isso. Um dos compositores que mais guardaram o que seria a nossa brasilidade em suas canções foi o Noel Rosa. Branco de doer, Noel fazia samba com negros num momento em que isso não se misturava muito. Acho que isso está muito agarrado à cultura brasileira, é muito difícil evitar. Principalmente, como falei, vindo dos lugares mais pobres. Aqui, as manifestações religiosas não são herméticas. Se você chega em qualquer manifestação religiosa com música, a roda se abre, sem perguntar de onde você é ou o que está fazendo ali. A cultura negra é generosa, por isso está sempre em evolução. O que poderíamos ser sem isso? Tenho uma música com o Seu Jorge, Carne, que fala sobre isso. Mesmo você tentando evitar, aquilo está em você e vem à tona. Acho lindo como isso é quase uma expressão biológica da resistência social.
CANÇÕES PARA DEPOIS DO ÓDIO
• De Marcelo Yuka
• Sony Music
• R$ 32,90
Faixa a faixa
» O dia em que o homem se cansa (Marcelo Yuka)
Com Bárbara Mendes e Bukassa Kabengele
» Assim é a água (Marcelo Yuka e Apollo 9)
Com Bukassa Kabengele
» Movimento da massa (Marcelo Yuka)
Com Bukassa Kabengele
» Por pouco (Marcelo Yuka)
Com Céu
» Myto (Marcelo Yuka e Apollo 9)
Com Bukassa Kabengele
» Agora nesse momento (Marcelo Yuka e Apollo 9)
Com Cibelle
» Confusão (Marcelo Yuka e Apollo 9)
Com Bukassa Kabengele e Bárbara Mendes
» Até você (Marcelo Yuka e Bukassa Kabengele)
Com Bukassa Kabengele e Bárbara Mendes
» Dali (Marcelo Yuka e Bukassa Kabengele)
Com Bukassa Kabengele e Bárbara Mendes
» A carga (Marcelo Yuka)
Com Bukassa Kabengele e Vick Lucato
» Um minuto antes do fim (Marcelo Yuka e Apollo 9)
Com Cibelle e Fellipe Mesquita
» Memórias artesanais (Marcelo Yuka e Jomar Schrank)
Com Bukassa Kabengele
» A tempestade (Marcelo Yuka)
Com Vick Lucato, Fellipe Mesquita, Bárbara Mendes
e Bukassa Kabengele
» Cortejo milenar (Marcelo Yuka e Jomar Schrank)
Com Seu Jorge, Bukassa Kabengele e Fellipe Mesquita
» Cidade do amparo (Marcelo Yuka)
Com Vick Lucato e Fellipe Mesquita
» Algo mais explícito (Marcelo Yuka)
Com Bukassa Kabengele, Bárbara Mendes, Ricô e Vick Lucato.