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Em 101 canções, Nelson Motta apresenta panorama da produção musical brasileira

Em novo livro, ele une qualidade e sucesso numa fórmula que tornou essas músicas inesquecíveis

Mariana Peixoto
- Foto: Daniela Dacorso/Divulgação
Rio de Janeiro
– A cultura pop é pródiga em listas, que, por seu lado, podem ser mais ou menos arbitrárias. Nelson Motta, do alto de seus 72 anos, tem autoridade para fazer qualquer lista da música brasileira. Presente nesse cenário desde a bossa nova, atravessou as décadas e os movimentos ora como compositor, ora como jornalista, produtor e agitador cultural.

Em seu novo livro, 101 canções que tocaram o Brasil (Estação Brasil/Sextante, 224 páginas, R$ 59,90) Motta pretende, com a colaboração do jornalista Antônio Carlos Miguel, traçar o panorama de um século de música no país. Retrato esse aberto a discussões. No posfácio, ele cita a série de ausências. Não há nada dos Mutantes ou da Jovem Guarda. Mas há duas canções de lavra própria (Dancin’ days, parceria com Ruben Barra) e Como uma onda (com Lulu Santos).

Lista, vale dizer, cada um tem a sua. O que é inegável é o esforço do autor em contextualizar cada uma das músicas (e, assim, citações de outros compositores procuram corrigir alguns esquecimentos).
A extensa trajetória de Motta está expressa em sua própria casa, um apartamento em Ipanema com uma das melhores vistas do Rio de Janeiro. A praia de Ipanema em toda a sua extensão é avistada do 12º andar de um edifício que tem como vizinho o Country Club. “O clube da grã-finagem carioca, 80% quebrada”, comenta Motta, que vive só com a companhia do gato Max. Seu escritório é na sala, a mesma em que convivem livros, CDs, discos de ouro de artistas que produziu (Marisa Monte e Fernanda Takai entre elas), fotos das filhas e netos e a célebre imagem “Seja marginal, seja herói”, de Hélio Oiticica. Na entrevista a seguir, Motta fala do novo livro, mas principalmente da música brasileira. Mais do passado do que do presente, diga-se de passagem. “Ouço pouca música, não tenho mais obrigação”, admite.

Vamos começar pelo fim. O posfácio de seu livro traz uma lista com os vários artistas e músicas que ficaram de fora. Os Mutantes, por exemplo, não estão. O Tropicalismo é citado em Domingo no parque (Gilberto Gil, 1967) e País tropical (Jorge Bem, 1969). Caetano Veloso só aparece no final da década de 1970, a partir de Força estranha (depois vem com Sampa e Terra, do mesmo período). Qual foi o critério para a seleção das 101 canções?
As músicas têm que ter sido muito populares, tocado em rádio, TV... O que adianta contar uma história que pouca gente conhece?  E não bastava ser bonita, bem feita.
Tinha que ter tocado o Brasil. Essa Terra nem chegou a ser muito popular, mas é tão emblemática. Foi a primeira vez que Caetano falou da prisão, “na cela de uma cadeia”.  Antes disso, ele não teve coisas com sucesso popular, não tinha outras músicas. E Domingo no parque é uma música de academia, uma inovação profunda na linguagem, dialoga com o cinema, marca a era dos festivais. Muito mais adequada do que Alegria, alegria, uma marchinha, uma música secundária do Caetano. No caso dos grandes, o que você vai fazer com um Chico Buarque da vida? Ele tem 30 obras-primas, metade cabia nos critérios. A música que marcou uma época, Apesar de você, foi um drible na ditadura, uma música que lavou a alma do Brasil. Construção é a música da maturidade dele, um exercício de virtuosismo. As músicas de mulheres são tantas que Olhos nos olhos, a meu ver, foi a mais conhecida. E no verbete de cada música são citadas várias outras.
Como escolher Roberto e Erasmo? Os caras têm 70 standards, mais do que Chico, Noel e Tom Jobim juntos.

Foi um exercício de corte, então?
Carlos Drummond de Andrade falava que escrever é cortar palavras. Sempre adotei isso. Fiz o livro a partir das listas existentes desde os anos 1980. Vi que mais da metade pelo menos eram músicas obrigatórias.

O livro começa com Chiquinha Gonzaga (Ó abre alas) quase como uma apresentação. Depois, efetivamente, com Pelo telefone (Donga e Mauro de Almeida), que está completando 100 anos. Por que terminar a lista em 2003 com À procura da batida perfeita (Marcelo D2)?
Nas listas que pesquisei reparei que a última década, a partir dos anos 1980, sempre tinha menos músicas. Claro, a música precisa de um tempo de maturação. A música vai se impondo (no decorrer do tempo), mas a maioria desaparece. Não queria correr esses riscos, músicas que podem desaparecer depois que o livro sair. À procura da batida perfeita também significa um momento importante na música, pois ela tocou tanto o público do samba como o do pop rock. Foi a fusão perfeita de coisas aparentemente antagônicas.

Em sua opinião, desde 2003 não há nada relevante ou precisamos de tempo para analisar a música?
A resposta oficial é que precisamos de mais tempo para ver a música. E a resposta verdadeira é que eu não tenho muito mais interesse por música em geral. Ouço pouca música, não tenho mais obrigação.

Você ouve pouca música ou pouca música nova?
As duas coisas. Hoje eu ponho no meu iPod e caminho na praia uma hora por dia de manhã. É assim que eu ouço. Ouço um disco, vou mantendo algumas, cortando algumas. Meu iPod vai sendo transformado. Hoje estou  sempre tirando, tirando, tirando.

Quem te chamou a atenção recentemente?
A artista mais interessante que vi foi a Alice Caymmi. Mas é uma performer, não é uma compositora. Há compositores jovens bons como Rodrigo Campello, os Hermanos. Gosto do Criolo, essa Karol Conka, tem os artistas de Belém...

Mas essas novidades trazem alguma inovação?

Inovação, de falar “isso é novidade”, a última tem uns 20 anos.

A música atual não acompanha a performance do artista?

A música está perdendo relevância em relação à imagem. O que é melhor: ver música com imagem ou sem? Essa civilização é muito marcada pela imagem. A música é secundária, de nichos. A música de massa é imagem pura.

Sobre essa onda LGBT na música atual.
Nomes como Liniker, Johnny Hooker, você tem acompanhado?

Glauber Rocha achava uma merda a música brasileira. Para ele era só João Gilberto, Tom Jobim, Dorival Caymmi e, num segundo plano, os baianos. João Gilberto era o deus dele. E ele dizia que João Gilberto afeminou a música brasileira. É verdade. É uma voz doce, ambígua, entre homem e mulher. No começo, quando ele cantava Chega de saudade, falavam: ‘bicha, bicha’, era um escândalo. A consequência disto é que João Gilberto liberou todo mundo para cantar. Até então, as vozes masculinas tinham que ser viris, másculas. Por outro lado, as mulheres passaram a cantar grosso. Elis Regina em alguns momentos, Maria Bethania, Simone, que tinha uma virilidade incrível.

Mas e quanto aos artistas novos que citei?
Ouço falar e não me dá muito apetite não.

Em novembro você recebe o Grammy Latino.
Esse reconhecimento mexeu com você?

Adorei, fiquei trêmulo quando o cara, um mexicano, veio aqui em casa falar do Grammy. Foi interessante também porque não olho para trás, não tenho tempo para isso. Tive que olhar para fazer um clipe, explicar porque estão me dando esse prêmio. Fiquei exausto, pois vi como fiz coisas. Boas ou ruins não sei, mas foram muitas.

E você se vê como o quê? Produtor, escritor, jornalista...
Minha vida é como lasanha. Tem a camada da bossa nova, rock, MPB, Cinema Novo, teatro musical. Uma vai se sobrepondo à outra. E quando você corta uma fatia, vêm todas juntas.

Também em novembro chega aos cinemas a cinebiografia Elis, de Hugo Prata. Você teve alguma participação no longa?
Tive e não tive. Eu e a Patrícia Andrade fizemos um primeiro tratamento do roteiro. Pois quando o Hugo finalmente ia começar a filmar, me mandou o roteiro. Vi nas primeiras páginas que não tinha nada a ver com o que eu tinha feito, para o bem e para o mal. Havia licenças poéticas para uma melhor fluência no filme. Ele juntou dois personagens em um;  colocou coisas de épocas diferentes no mesmo lugar. Como roteirista eu até poderia aceitar, mas como crítico musical não poderia assumir. Pedi para tirar nosso nome dos créditos, mas tudo na boa.

CANÇÕES DAS GERAIS
Confira sucessos de Minas incluídos no livro de Nelson Motta
Na baixa do sapateiro, Ary Barroso (1938)
Aquarela do Brasil, Ary Barroso (1939)
Pra machucar meu coração, Ary Barroso (1943)
Travessia, Milton Nascimento e Fernando Brant (1967)
Nada será como antes, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos (1971)
O bêbado e a equilibrista, João Bosco e Aldir Blanc (1979)
Coração de estudante, Milton Nascimento e Wagner Tiso (1983).