Elas não sofrem em silêncio. Não têm hora para voltar para casa, dores de cotovelo mal curadas ou vontades reprimidas. O eu lírico feminino da nova geração de cantoras sertanejas até sofre, mas cobiça, esnoba e castiga os amores mal-sucedidos enquanto se diverte.
Herdeiras das pioneiras Irmãs Galvão, Irmãs Castro, Inhana (Cascatinha & Inhana), Inezita Barroso, Sula e Roberta Miranda, as damas do sertanejo contemporâneo dão voz a versos mais politizados do que os de algumas de suas antecessoras – em vez do “beijinho doce” e da “colcha de retalhos”, levam para os palcos o empoderamento feminino, liberdade sexual e combate à violência contra a mulher.
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“Há, agora, uma quantidade expressiva de artistas mulheres, várias delas compositoras, além de maior interesse por esse tipo de artista, tanto comercialmente quanto por parte do público”, esclarece o pesquisador Gustavo Alonso, doutor em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira (Civilização Brasileira).
Segundo ele, o gênero tem por característica a renovação de sua popularidade a cada uma ou duas décadas, a partir de novos ciclos criativos. A função é cumprida atualmente pelo chamado “sertanejo feminista”. A politização das letras, contudo, é elemento familiar ao gênero, observa Alonso.
“Com frequência, gosta-se de dizer que as camadas populares no Brasil são alienadas, que os gêneros musicais que elas apreciam são despolitizados. Diversos fatos provam o oposto. Os compositores sertanejos se posicionaram politicamente em diversos momentos da história, seja a favor ou contra os governos, demandando injustiças ou denunciando a dura realidade dos mais pobres”, diz Alonso.
Bandido com razão (Zezé di Camargo), Garoto de rua (Zezé di Camargo) e Natureza, espelho de Deus (Paulo Debétio/Paulinho Resende), dedicadas a expor desigualdades sociais e exploração ambiental, respectivamente, são exemplos de canções lançadas nos anos 1990.
O protagonismo das mulheres estabelece a natureza inovadora do trabalho das contemporâneas Marília Mendonça, Maiara e Maraísa, Paula Mattos e Karla Karolla. Em lista desenvolvida pela organização Universidade Livre Feminista (ULF), o rap e o funk despontam como gêneros com maior repertório feminista.
“A linguagem da nova safra sertaneja envolve bar, bebida e farra. Elas não se submetem ao machismo. Se artistas como eu não tivessem levantado com afinco a bandeira, seria muito mais difícil trabalhar. Elas sabem disso, nós lhes deixamos um legado. Luto por elas há 30 anos, estou aqui para abraçá-las”, diz Roberta Miranda, apontada pelas “novatas” como referência. Ano passado, Roberta usou o YouTube para publicar mensagem de apoio às sucessoras.
“Simone e Simaria gravaram música contra a violência doméstica (Ele bate nela). Já Maiara e Maraísa, Marília Mendonça e Paula Mattos cantam a mulher como personagem principal, agindo da mesma forma que os homens: bebendo, sofrendo e, desde que a geração universitária criou essa estética, dando o troco na traição”, lista o pesquisador Gustavo Alonso.
“Não me considero (feminista), mas uma pessoa que busca igualdade. Se me colocar como feminista, vou assumir que existe diferença, e é isso que temos que evitar”, já declarou Marília Mendonça. “Não somos (feministas). Somos apenas duas artistas que cantam o que sentem e que querem o seu espaço. Lutamos por liberdade”, endossa Maiara. A pioneira Roberta Miranda relativiza: “Se ser feminista é lutar por um lugar digno na música sertaneja, considero-me (feminista), sim”.
ESTIGMA
Estudiosos atribuem essa recusa em se assumir feminista a estigmas em torno do conceito de feminismo e ao show business patriarcal. Luís Braúna, integrante do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidade da Universidade Federal de Pernambuco (Gema/UFPE), diz que essa postura tem o intuito de conservar público mais abrangente.
“A mulher se declarar feminista, acima de tudo, é um posicionamento político. Estamos inseridos em uma cultura que quer, cada vez mais, distanciar o social e o cultural de tudo o que é político. Ao promoverem a valorização da mulher e, por vezes, não se declarar feministas, elas se distanciam da discussão política e atraem público bem mais amplo, que apenas se identifica com as letras”, acredita ele.
Porém, isonomia e sororidade, conceitos atrelados ao feminismo, são recorrentes no discurso das artistas. “O que mais fortalece é a união das mulheres quando elas compartilham o que fazem e se ajudam. Não podemos ficar só no mundo de Maiara e Maraísa. Queremos saber o que está acontecendo com Naiara Azevedo, Simone e Simaria, Marília Mendonça. Temos de nos manter unidas”, diz Maiara.
Segundo ela, houve resistência do mercado fonográfico a essa opção. Portas se fechavam quando vinha à tona que canções popularizadas nas vozes de Jorge e Mateus, por exemplo, eram composições das gêmeas. “Só porque somos mulheres”, afirma Maiara.
QUEM SÃO ELAS
Marília Mendonça
Aos 21 anos, a a goiana acumula 2,1 milhões de inscritos em seu canal no YouTube e 2,2 milhões de seguidores no Facebook. Compositora de sucessos como Infiel, Eu sei de cor, Sentimento louco e O que falta em você sou eu, ganhou o apelido de “Adele do Sertanejo”. Antes de gravar o primeiro álbum, Marília Mendonça ao vivo (2016), compunha para Jorge e Mateus, Wesley Safadão, Lucas Lucco, Henrique e Juliano e Cristiano Araújo, chegando a emplacar hits na voz dos colegas, como Cuida bem dela e Até você voltar. Suas composições têm por característica a independência da mulher e a apropriação de atitudes antes masculinas. As letras falam de vingança após traições, farras, bebedeiras e desilusões amorosas.
Maiara e Maraísa
As gêmeas mato-grossenses assinam os hits 10%, No dia do seu casamento e Medo bobo, popularizados nas vozes de Henrique e Juliano, Jorge e Mateus e Cristiano Araújo. Cantam desilusões, vinganças e autonomia
das mulheres em bares, festas e baladas.
Paula Mattos
Mato-grossense, ganhou destaque com o álbum Paula Mattos acústico (2015) e atrai cerca de 760 mil seguidores no Facebook. As letras falam da mulher financeiramente independente, que toma a iniciativa da conquista e
assume as rédeas dos relacionamentos.
Naiara Azevedo
Seguida por 1 milhão pessoas no Facebook, a paranaense ganhou fama em 2011, ao gravar Coitado, resposta ao hit Sou foda, de Munhoz e Mariano. “Coitado, se acha muito macho/ Sou eu que te esculacho/ Te faço de capacho”, diz a letra. Canções falam de amor-próprio e da autonomia da mulher em realizar os próprios desejos.
Simone e Simaria
Ex-backing vocals de Frank Aguiar, as baianas integraram a banda Forró do Muído e partiram para a carreira solo como As Coleguinhas. Simone e Simaria cantam a independência financeira e emocional das mulheres. A dupla tem 5,1 milhões de seguidores no Facebook. Em Ele bate nela, denunciam a violência doméstica.