As mais caras memórias musicais guardadas de Gonzaguinha (1945-1991) pela filha, Fernanda Gonzaga, não são as famosas O que é, o que é?, Espere por mim, morena ou Lindo lago do amor. Aos 36 anos, ela reuniu no primeiro disco solo da carreira, Toda pessoa pode ser invenção, as 12 canções mais queridas do filho do Rei do Baião, falecido durante um acidente de carro logo após uma apresentação no Paraná, quando tinha 45 anos – e Fernanda, 12. Financiado com apoio de internautas, através de campanha de crowdfunding no Embolacha, o álbum está disponível para audição on-line na íntegra.
Em setembro, ela fez show no mês de nascimento do pai para lançar Toda pessoa pode ser invenção. “A emoção é muito grande, não apenas pelo fato de estar no palco cantando o meu pai, mas as músicas que eu escolhi têm letras e discursos muito fortes. Meu pai é um compositor muito atual. A reação das pessoas foi ótima, teve gente que não conseguiu nem falar comigo direito depois”, recorda.
O público é presenteado com duas faixas inéditas: Relativo, sobre a existência humana, cantada em dueto com Paulinho Moska, e a otimista Aprender a sorrir, na qual divide os vocais com Ivan Lins. “Eu tinha dado essa música para o Paulinho uns 12 anos atrás, por achar que tinha a ver com ele. Se papai fosse vivo, acho que seriam bons amigos. Relativo era a mais difícil e a que mais queria gravar”, revela. A relação musical dos dois começou quando Fernanda ainda era integrante do Chicas, do qual saiu em 2011. Com espetáculos dedicados à música brasileira, o grupo participou, no ano passado, de homenagens musicais aos 70 anos de nascimento de Gonzaguinha, em noites com participação dos filhos.
Ivan Lins é uma escolha fácil de explicar e resultou em um encontro “ótimo, superdivertido”, segundo o artista. O cantor e compositor carioca foi amigo e um dos poucos parceiros musicais de Gonzaguinha: os dois compuseram juntos Debruçado, Sedução e Desenredo (G. R. E. S. Unidos Do Pau-Brasil), uma visão irônica sobre a chegada dos portugueses ao nosso país. Ivan é padrinho do primogênito, Daniel Gonzaga, fruto do primeiro casamento, com Ângela, de quem Gonzaguinha se separou quando Fernanda tinha 3 anos. As outras filhas são Mariana, da união com Louise Margarete Martins (Lelete), e Amora, com a atriz Sandra Pêra.
Apesar da distância física – Fernanda morava no Rio de Janeiro e o pai, em Belo Horizonte –, ele nunca foi um pai ausente, garante a artista. “A gente estava sempre brincando, criando. Ele sempre quis trazer as brincadeiras mais simples, pipa, pião, pular amarelinha, coisas que você pode fazer”, conta. A prole sempre passava as férias com o pai, na capital mineira, e o acompanhava nas turnês. “A falta que ele faz é estúpida, não tem como mensurar. A falta é diária. Alguém assovia na rua, eu entro no táxi e escuto. Não tem como descansar a perda, mas nunca coloquei peso nela.” Fernanda guarda boas recordações também das viagens a Exu, para visitar o avô pernambucano, e das brincadeiras no amplo espaço, sempre aberto às pessoas da cidade.
O baú de canções nunca lançadas é suficiente para um álbum completo e os irmãos têm planos de resgatá-las. As músicas estão registradas em fitas cassete, gravadas geralmente em casa, no Rio de Janeiro. O hábito, outrora, conduziu a jornalista e escritora Regina Echeverria nos capítulos do livro Gonzaguinha e Gonzagão: Uma história brasileira (Ediouro, 2006, indisponível), adaptado para os cinemas por Breno Silveira no filme Gonzaga de pai para filho (2012).
A primeira gravação fonográfica de Fernanda Gonzaga foi com Gonzaguinha e os irmãos Daniel e Amora, quando tinha 9 anos. A família cantou o clássico Asa branca, no disco Luizinho de Gonzagão Gonzaga Gonzaguinha (1989), homenagem ao sertanejo pernambucano de Exu com músicas juninas compostas por ele. O reencontro com a obra do pai, de quem é grande admiradora, permeou toda a carreira de Fernanda. Para a estreia solo, nenhum repertório poderia ser tão adequado quanto as canções do pai.
FAIXA A FAIXA
Memórias da infância, lições, sabor de saudade em letras, versos e musicalidade. Fernanda Gonzaga entrelaça as palavras e os sentimentos para comentar as composições escolhidas carinhosamente por ela para fazer parte do álbum em homenagem ao pai
Belo balão
» “É totalmente a minha infância. Meu pai soltava balão nas festas juninas, numa época quando era inocente mesmo”, recorda. A canção fazia parte do repertório de Barulhinho, show das Chicas dedicado ao público infantil.
Caminhos do coração
» De LP homônimo de 1982, o xote ganha versão sem zabumba e triângulo. “Define muito a paixão do meu pai pelos país, pelas pessoas, e o quanto viajar o Brasil era importante para ele”.
Aprender a sorrir
» Uma das inéditas, foi apresentada a Fernanda quando o pai ainda estava vivo, na casa dele, e remete ao otimismo de O que é, o que é.
Moleque
» Do primeiro disco de Gonzaguinha,foi cantada em festivais. “É uma música da ditadura, uma das mais importantes. É uma letra bem dura, amo de paixão”, elogia.
Dias de santos e Silvas
» Samba sobre as dificuldades do cotidiano (“condução cheia”, “bronca do patrão”), é exemplo das letras sociais. “É uma música que poderia
ter sido feita hoje. É da década de 1970, mas ainda é a descrição de uma rotina brasileira. Não mudou, infelizmente”, lamenta.
Plano de voo
» Lançada em 1975 em disco homônimo considerado o mais relevante por Fernanda. “É uma letra de que eu sinto falta, porque é cruel. É bem bonita. É bem emocionante”.
Assim seja amém
» Com participação do irmão, Daniel, encerra a tríade mais social e política do disco. “Escutava muito em casa e chorava muito. Nunca consegui cantar sem chorar”, confessa.
O gosto do amor
» Para o samba com pandeiro, Fernanda convidou a irmã, Amora, também dona de voz leve. Elas fundaram, junto a Paula Leal e Isadora Medella o
grupo Chicas.
Relativo
» Surgiu de conversa entre Gonzaguinha e Daniel: o filho pensou a existência de máquina capaz de projetar na parede a visão da pessoa sobre
determinadas situações.
Pessoa
» Retrato poético da paixão do artista pelo ser humano: “Pessoa é o que ela é/ Só ela vê o que ela vê/ Só ela faz o que ela faz/ Só ela sabe o que viveu”. “Meu pai era muito apaixonado pelas pessoas, pela particularidade das pessoas. É muito mais bonito assumir que a gente precisa do outro do que bancar de autossuficiente”, crava. Participação da cantora Beth Dau e do pianista Eduardo Farias.
Guerreiro menino (Um homem também chora)
» Faixa mais famosa entre as pinçadas, foi lançada por Fagner, em 1981.
O começo
» Escrita por Gonzaguinha para Ângela, baseada na separação do casal, retrata o desenlace amoroso, mas também o início de outras histórias. “Praticamente tudo que você escutar do meu pai é autobiográfico”, alerta.