Para celebrar a data redonda, acaba de ser lançado, pelo selo Sesc, o segundo CD da orquestra, A saga da travessia. Um disco que convive bem ao lado de trabalhos recentes, como os da Abayomy Afrobeat Orquestra, a da Spok Frevo Orquestra e do grupo Bixiga 70, e mostra evolução desde a bela estreia, em 2009, que tinha a presença de Ed Motta (na faixa Balendoah) como chamariz para um novo público. A mistura de percussão baiana com linguagem jazzística segue um estimulante roteiro, inspirado na trajetória e nas tragédias do povo africano. Baseado no diálogo dos tambores com os sopros, compostos e arranjados pelo flautista e saxofonista Letieres Leite, o álbum foi gravado no Teatro Castro Alves, em Salvador, em janeiro passado. E registra, em oito faixas, um misto de densidade e fluência raro em trabalhos conceituais desse nível.
Com títulos que sugerem cenas e fatos que a música ajuda a imaginar e/ou reconhecer, o CD abre com a trilogia que dá nome ao álbum, uma espécie de suíte em três partes, com Banzo 1, Banzo 2 e Banzo 3. Banzo é o sentimento misto de nostalgia, saudade e melancolia que os africanos vindos para o Brasil tinham da sua terra.
OGUM - Mas o roteiro, encerrado com os épicos 11 minutos da cinematográfica Mestre Bimba, visita o palácio de Ogum, que varia entre ritmo de capoeira e toque para ogum, passa por cenas que remetem a nobreza, influências, sabedoria e cenas populares. A primeira foi feita inicialmente para o quinteto, mas Letieres confessa que, desde o início, tinha o que ele chama de “característica orquestral”. Professor luminoso é um ijexá em homenagem a Gilberto Gil. Feira de sete portas tem uma origem curiosa, como conta o compositor: “Estava fazendo um ensaio fotográfico na feira e soltaram uma galinha. Vi música naquilo e me inspirou.” E Dasarábias Letieres fez “para homenagear a origem ancestral árabe”.
A Rumpilezz é formada por quatro músicos de percussão, que tocam atabaques, surdo, timbau, caixa, agogô, pandeiro e caxixi, além da atabaqueria, bateria com tambores substituídos pelos ataques do candomblé. A essa “cozinha”, estão aliados 15 músicos de sopro, com naipes de trompete, trombone, saxes (alto, soprano e tenor), flautas e baixos (tuba, sax barítono e trombone baixo). O nome da orquestra, que traduz com precisão a sonoridade do grupo, vem dos tambores do candomblé, rum, rumpi e lé, com os dois zês da palavra jazz fechando o conceito e a marca.
Letieres Leite tem mais de três décadas de carreira. Começou com as artes plásticas, estudou música na Universidade Federal da Bahia, passou temporadas como músico, arranjador e produtor em Salvador, no Sul/Sudeste do país e na Europa. O elenco que contou e conta com seus serviços vai de Toninho Horta e Hermeto Pascoal e os jazzistas Joshua Redman e Steven Bernstein a estrelas populares como Gilberto Gil, Ivete Sangalo, Lenine e Lulu Santos. Esse livre trânsito faz com que ele destile sua musicalidade baseada na herança afro-baiana com elementos de outros estilos e culturas, formando um conjunto que rima erudição com popularidade. Casamento que falta em boa parte da cena instrumental brasileira, na maioria das vezes composta por músicos mais preocupados com escalas do que com escolas.
SARAVÁ, BAHIA!
Logo nos primeiros segundos de O corpo de dentro, primeiro álbum solo do guitarrista Lourenço Rebetez, fica claro que não se trata de um disco de jazz como se está acostumado a ouvir. Os timbaus, instrumento de percussão muito usado na Bahia por grupos como Timbalada, conduzem a faixa de abertura, assim como faz o agogô em outras tantas.
“Eu me considero um instrumentista, mas a minha atividade como compositor não vem do violão nem da guitarra. Componho na cabeça e no piano. E toco mal piano! Mas, de certa forma, não usar um instrumento que domino ao compor me ajuda a evitar vícios e maneirismos. Isso me força a tirar a música da minha imaginação. Na gravação, optei por usar a guitarra nas faixas que tinham a ver (em quatro, de 10), mas não para me exibir ou me afirmar como instrumentista. Quis me apresentar como compositor.”
O projeto que resultou em O corpo de dentro nasceu mais ou menos em 2010, quando o paulistano Rebetez, hoje com 30 anos, voltava de um período de formação musical – exatamente em composição de jazz – na Berklee College of Music de Boston. Cheio de ideias, gravou trilhas e começou a trocar experiências com outros músicos da cena de São Paulo. Conselhos para gravar um trabalho autoral não faltavam, mas o músico optou por esperar as “condições perfeitas”.
IDENTIDADE - “Esse intervalo acabou tornando o disco mais pessoal. Queria muito que fosse um trabalho com personalidade, que tivesse identidade, e esse tempo me fez amadurecer musicalmente”, conta. “Nesse período, troquei muito com o Arto Lindsay, até perceber que era a hora.”
Lindsay viria a ser o produtor de O corpo de dentro e surge nesse contexto com importância semelhante à de outra experiência transformadora vivida por Rebetez.
O paulistano, que cita discos de Caetano Veloso (Livro), D’Angelo (Voodoo), Moacir Santos (Coisas), Wayne Shorter (Alegría) e Carlinhos Brown (Alfagamabetizado) como grandes influências em seu trabalho, conta que aquela experiência com o maestro abriu seu olhar para os ritmos tropicais como samba-reggae, ijexá e elementos do candomblé. Viu naquilo matéria-prima para fazer um álbum “brasileiro, moderno, contemporâneo, mas não folclórico”.
E não foi só. Da Rumpilezz, ainda pegou emprestado os percussionistas Gabi Guedes (“Um grande mestre criado e crescido no terreiro do Gantois, em Salvador, dono de uma ancestralidade gigante”) e Ícaro Sá, que viraram trio com a inclusão do também baiano Iuri Passos. Eles se juntaram ao restante da banda, formada basicamente por talentosos amigos e contemporâneos de Rebetez em São Paulo. (Luccas Oliveira, Agência Globo).
.