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'Tem que acabar com essa cultura do povo não ter culpa de nada', diz Mano Brown

Em entrevista exclusiva, ícone do hip-hop nacional rebate críticas à sua aliança com o funk carioca e acredita que a periferia deve assumir a responsabilidade por permitir o impeachment

Ângela Faria

- Foto: Marcello Preto/divulgação

Mano Brown está na área. Sábado, ele chega à capital com o Racionais MCs para defender Cores e valores, disco lançado há um ano e meio. Ponto fora da curva do hip-hop nacional, o projeto aposta em proposta radicalmente diferente da fórmula que consagrou o grupo. Arriscar, garante Brown, valeu a pena. ''Qualquer passo para a frente é melhor'', argumenta. ''Sou um cara criativo, não vou me copiar. Eu respiro as ruas. Meu rap respira as ruas'', diz.
O repertório da turnê também traz hits da banda.

Cultuado por jovens como o atacante Luan, de 23 anos, Pedro Paulo Soares Pereira, de 46, não tem o menor interesse em ''virar estátua de bronze''. Aposta na nova geração, fez questão de apoiar pessoalmente a garotada que ocupou a Fábrica de Cultura do Capão Redondo, na periferia paulistana, para reivindicar educação de qualidade. ''Sou highlander. Sempre entendi que a mudança tem que vir. E a mudança tá na mão dos jovens'', avisa.

Cronista do ''Brasil gângster'', diz que a ''lei da mais valia'' contaminou toda a sociedade. Recentemente, durante um show, afirmou que a favela voltou as costas para o governo Dilma Rousseff. Brown apoiou o PT em diversas eleições, mas anuncia: encerrou um ciclo em sua própria vida. Em entrevista ao Estado de Minas, ele avisa: ''Não vou querer mais chavecar ninguém, tá ligado? Nem fazer a mente de ninguém para votar em ninguém''.

O último disco do Racionais, Cores e valores, é ponto fora da curva do rap brasileiro, com faixas curtas e sonoridade inusitada, inclusive com pegada experimental. A princípio, o fã estranhou. A turnê do Cores... já tem um ano e meio. Valeu a pena apostar em mudança tão radical?
Valeu. Qualquer passo para a frente é melhor. Sou um cara criativo, não vou me copiar.
Respiro as ruas. Meu rap respira as ruas. Sempre falo de causas sociais, de partido político, de assuntos já mapeados – você já sabe o que o Mano Brown vai falar... Mas ninguém põe limite no que tenho de falar. Não tô no barato pelo dinheiro, tô pela minha vaidade pessoal. Dinheiro é consequência. Eu gosto é de tumultuar. Então, é criar uma coisa séria, uma coisa madura. Só há uma maneira de crescer na profissão e fazer andar: fazer uma coisa madura, responsável, morô? Realmente séria.

Vocês têm feito shows em todas as regiões do país. Como é a recepção do público à nova proposta do Racionais? O recado chega aos jovens?
Os jovens são mais abertos, mais receptivos, eles entendem mais.
Os antigos são mais conservadores e tendem a querer um disco saudosista, uma coisa que passa a lembrar a infância deles, o que também é possível. A gente, em determinado momento, tem que ver o que é utopia e o que é realidade. O que é utopia? Viver de sonho, a maior hipocrisia. Outra coisa é assumir o que você tem que fazer, assumir o seu papel na sua comunidade e ser o que você tem de ser, sem se acovardar.

Alguma das novas músicas tem chamado mais a atenção?

No momento, a do Edi Rock (O mal e o bem). As do Brown são um pouco mais complexas, está sendo um pouco mais demorado. Mas isso não me preocupa, não tô com essa pressa toda de ser compreendido. É só tumultuar. O lance é a linguagem: complexa, ela fala do gueto, onde tem várias ambições em jogo. Vida real em jogo, em carne e osso.

Uma das faixas mais complexas é Coração Barrabás. Nesta época em que tanto se discute o feminismo, você fala ali do homem: apaixonado, mas dividido entre mudar sua postura, digamos machista, refém do que você já chamou de ‘monstro ancestral’. Coração... vem engatilhada com Eu te proponho, sobre um amor possível e mais bacana, nem que seja fugindo para outro lugar.
Cada um sabe de que tipo de liberdade precisa. Qual é a motivação para continuar vivendo: começar do zero, uma vida nova, ou consertar uma velha vida – seja aqui ou seja lá?

A complicada relação homem-mulher no mundo de hoje...
Com certeza. Para muitos, para o nosso pessoal, é coisa da vida real. Não tenho que ser um rapper panfletário, partidário, das causas predeterminadas por alguém que nem sei quem é. Minha diretriz sou eu, meu coração, meu povo. É pessoa a pessoa. As pessoas não são iguais, as sensibilidades e percepções são diferentes. É muito diferente de quando você vê a pessoa como classe. Muito do rap vê as pessoas como classe, como slogan. E o gueto são seres humanos, pessoas, indivíduos. É isso que me interessa. Rótulo não me interessa. Se a batida é acelerada ou a batida é lenta, isso não me interessa. Essa análise é pra quem não tem o que fazer. Pra mim, a vida real é mais urgente e mais importante.

Você é pai de dois jovens, Jorge e Domênica. Recentemente, o atacante Luan, de 23 anos, ao ser convocado para a Seleção Brasileira que disputa a Olimpíada, disse te ter como exemplo. Inclusive, adota como lema 'Quero vencer sem pilantrar com ninguém/Quero dinheiro sem pisar na cabeça de alguém', verso de A vida é desafio, hit do Racionais. Como é a sua relação com os jovens?
Muito tranquila, muito suave. Transito com os mais jovens e os mais velhos do que eu. Esses são pouquíssimos – são poucos sobreviventes, venho de uma geração em que muitos perderam a vida rápido. Sou um highlander. Sempre entendi que a mudança tem que vir, e a mudança tá na mão dos jovens. O jovem reivindica, ele vai para a rua, cobra. Ele quer sobreviver à opressão. Então, ele pega a mentalidade, a novidade que tá no ar. Você não pode combater isso. Você tem de respirar com eles, pulsar o coração com eles. São outros tempos.

Recentemente, você foi à Fábrica de Cultura do Capão Redondo, em São Paulo, ocupada por jovens alunos contrários à redução de cursos oferecidos, temerosos da demissão de professores. O que encontrou lá?
Fiquei muito orgulhoso deles. Independente dos resultados, só de estarem ali e se comportando daquela forma. Orgulhoso de saber que na periferia as pessoas estão peitando, lutando. É gente de visão, nova, falando com caras de 40, de 35 – e com razão, o que é mais importante. Sabendo exigir o que é direito deles: aprender a trabalhar, uma profissão. É o Estado de Direito. Tem que dar condição às pessoas. Não é construir cadeia e fechar escola, entende? Isso de combater o criminoso, mas não evitar que entre para o crime... Você tem de dar condição para sonhar. Então, a luta continua e a minha luta não é fixada numa capa de disco ou em 12 músicas dentro de um CD. Não é uma luta de batida – se é funk, se é rap, se é samba, se é forró. Mas é a luta de todo dia, nas pequenas e boas situações. Longe dos holofotes e na frente dos holofotes. É muito fácil posar de revolucionário na frente dos holofotes. Manter pose de Mano Brown super-herói é mole. É só mandar as mesmas ideias... Mas não quero isso. Quero mostrar quem eu sou de verdade, não mentir para os meus irmãos. Dizer: tô discordando de tal fita. Dizer: pra mim, tá errado. Com eles eu falo primeiro, não dou a cabeça dos meus irmãos na mídia. Agora, se uns e outros preferem mirar em mim em vez de mirar no sistema, demorô, também. Sou mais forte, sou highlander.

Você pôs a cara para bater ao buscar o diálogo com outros estilos musicais. Recentemente, gravou com o Naldo, funkeiro carioca, a faixa Benny e Brown no último disco dele, Sarniô, com direito a clipe. Parte dos fãs te execrou nas redes sociais. Outros vieram te defender. É difícil convencer o fã a se abrir a outros sons?

Não estou esperando permissão de ninguém. Você sabe que sou rebelde. Não é o rótulo disso ou daquilo que vai me fazer boneco. Não sou boneco de nada. Não sou boneco nem dos fãs. Se o cara quiser curtir o Racionais, tudo bem; se não quiser, tudo bem. Sou santista, mas tenho uma pá de amigos que torcem para Corinthians, para o São Paulo. Tô na pista, sou um trabalhador, sou um empregado da ideia. Não pago de vítima. Vendo a minha arte, morô? E declamo a minha guerra. É assim que eu vivo.

 

Em seu projeto solo, Mano Brown junta soul, rap e funk das antigas. Confira: 

 

 

O funk carioca é tão discriminado hoje quanto o rap foi no passado. Às vezes, dizem até que nenhum dos dois é música. É importante ampliar fronteiras, tirar as cercas em volta dessas expressões da cultura popular?

A cerca já existe. A periferia tá cercada. Hoje em dia, as pessoas vão pelos ouvidos, pelo que comem, pelo que ouvem, pela mentira que consomem, a droga que consomem através da televisão, através de uma mídia direcionada, que te direciona ao errado na vida, te levando ao erro, que te conduz ao erro. Tudo que faz mal para o seu cérebro é droga: o que te tira o chão, te tira da direção certa e te deixa cego. Tacar areia no seu olho é droga. Mentira é droga. Golpe é droga. Cada um usa a droga que quer. Mais parece uma boca gigante. Todos os tipos de droga... Só não pode vender maconha, o resto tá tudo aí. Tudo liberado: a hipocrisia, a meia verdade, a meia mentira – tudo misturado. Todo mundo batendo cabeça, mano. A pessoa não sabe onde ir, não sabe o que é verdade. É a caça às bruxas: todo mundo é um pilantra em potencial, entendeu? Ninguém mais presta. Até o cara que presta já é visto como alguém que não presta. É o fim do mundo, a mentira tá no ar.

Falando de política, Preto zica, faixa de Cores e valores, mais parece trilha sonora do Brasil da delação premiada, em que o amigo de ontem entrega o antigo parceiro para a polícia, grava fitas escondido e leva para o juiz. O verso desse rap fala do sujeito “no mó conchavo/torcendo por você/e calculando seu cada centavo”. Como você vê o nosso país?

É o Brasil gângster. Todo mundo age como gângster, é a lei da mais valia. Desde os ‘veinho’ lá de cima, cabeça branca, colarinho branco, até aqui embaixo, no nosso meio. Um país onde você não respeita idoso, não respeita o cego, a mulher grávida, o lixeiro. É um tirando vantagem em cima do outro. Então, qual é que é? Tem que começar tudo de novo... O cliente leva embora a carteira que o outro deixou no balcão. Funcionário rouba o patrão, o patrão paga merreca para o empregado.

Recentemente, durante um show no Rio de Janeiro, você afirmou que a periferia ficou de costas para a presidente Dilma Rousseff e, de certa forma, apoiou o impeachment. Disse também que agora se fecha um ciclo na vida do Mano Brown. Que ciclo é esse?

Fecharam com a Globo, fizeram o que fizeram... Apertou o botão, virou de costas, deixou acontecer. Então, também não podem exigir muita coisa de ninguém, não. Em relação a político A ou B, cada um tem o seu posicionamento. Não vou querer mais chavecar ninguém, tá ligado? Nem fazer a mente de ninguém para votar em ninguém. É o seguinte: o cara que ouve rap não pode ser um adolescente de 40 anos, um adolescente de 25 anos. Ele é responsável pelo que faz. Se o cara apoiou o impeachment, parabéns. Vai segurando, mano. Não vem reclamar do Brown depois, entendeu? A mudança é coletiva. Deixou acontecer, os ‘cara’ tomou de assalto, é golpe. Nem se informou e já tava fechado com os caras, já tava falando por aí as mesmas coisas que eles falavam. E tuitando a fofoca, o golpe, entendeu? Então, você é responsável também, você tem culpa. Tem que acabar com essa cultura do povo não ter culpa de nada. Quem é que tem culpa então? Quem é o sistema? Quem é que faz o sistema? Se toca determinada música na rádio, é porque o povo bota. Eles elegem e a música toca. Eles compram, a coisa acontece e a máquina funciona. Quem condena e quem consagra é o povo. Vamos assumir a responsabilidade, mano. É um país maduro: o brasileiro já sabe o que é bom – gosta de champanhe, gosta de iPhone, de tênis caro, de corrente de ouro, de comida a quilo, restaurante japonês. Todo mundo gosta, é preciso assumir. Aprendeu costumes sofisticados? Assume! A gente não vê mais aquele Brasil dos anos 80, em que as pessoas não tinham o que comer. Hoje, as pessoas estão obesas e comendo demais, morrendo pela boca, entendeu? Isso é errado. Suicídio.

Recentemente, seu companheiro KL Jay, que é vegano, saindo de um show de vocês, postou a foto do M de uma rede de fast food e escreveu embaixo: M de morte.

É a casa da morte lotada todo sábado, domingo, feriado e dia santo. Lotada sempre. É a cultura do suicídio.

Momento solo

Carlos Dafé - Foto: Atração/divulgação

Em julho, Mano Brown foi a Nova York finalizar o disco solo prometido para este ano, masterizado no famoso Quad Studios. Boogie naipe, com pegada soul, resgata o funk das antigas. O ídolo americano Leon Ware (foto), parceiro de Marvin Gaye e prata da casa da lendária gravadora Motown, é um dos parceiros do rapper, assim como Carlos Dafé (foto), conhecido como Príncipe do Soul Brasileiro.

 

 

Leon Ware - Foto: Staxrecords/divulgação

Vinte faixas intimistas com pegada romântica – bem diferentes do estilo Racionais – formam o repertório. O teste na pista tem funcionado. Na internet, imagens gravadas no Morro Santa Marta, no Rio de Janeiro, mostram a garotada dançando a valer no baile animado por Brown e seu fiel escudeiro, o cantor Lino Krizz.

“Baile é legal, né?”, comenta Brown, mas a turnê ainda está para ser decidida. “Quero levar para as quebradas, os morros, pro povão. É a música que fiz pra mim. Acredito numa ideia: falar de coração pra coração. As pessoas estão com o HD cheio – tanta violência, tanto gangsterismo. Quero ser companheiro do meu povo”, afirma.

 

RACIONAIS MCS

BH Hall. Avenida Nossa Senhora do Carmo, 320, Savassi, (31) 3209-8989. Sábado (13/8), a partir das 22h. Show de abertura: Karol Conka. Convidados: Das Quebradas e DJ Zeu. Inteira: de R$ 100 a R$ 140, dependendo do lote. Ingresso especial: R$ 60, à venda na bilheteria oficial e no site da T4F Tickets for Fun (destacar o código promocional “racionaisbhhall”). A compra especial é limitada a seis entradas por CPF. Preço não cumulativo para meia-entrada e outros benefícios.

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