“Comigo os produtores dos concertos têm que ter um pouco de paciência”, afirma o compositor e pianista Rafael Nassif, de 32 anos, contando que demora a decidir o programa de suas apresentações. A observação tem motivo: “Não toco uma peça só por tocar. Valorizo o diálogo entre as obras. Gosto de ver as relações que as músicas vão criando quando reunidas. É como se estivesse compondo acorde por acorde”, diz, ressaltando que quer oferecer ao público o melhor. Por isso Nassif sempre faz várias versões do programa, toca tudo em casa, para ouvir como uma música vai contaminando a audição da outra, até a decisão final.
A seleção feita por ele para o concerto que oferece hoje, às 19h, na Fundação de Educação Artística (FEA), é ousada. Abre a noite uma peça que talvez seja a mais polêmica da história da música: 4’33”, de John Cage (1912-1992). Composta em1952, consiste em músico, com toda postura de instrumentista de concerto, diante do piano, sem tocar nada, por quatro minutos e 33 segundos. “Não é provocação”, avisa o músico. “É uma peça que direciona o público e o intérprete à escuta ativa e, por isso, para mim é muito importante. Mesmo sendo só silêncio, ela soa diferente cada vez que muda o intérprete”, conta. E coloca sob o verbo escutar desde o ouvir a si mesmo até a atenção aos ruídos do ambiente durante o tempo da peça.
A apresentação de 4’33” no concerto é, avisa o músico, um prelúdio para mostrar Jogos 2, de György Kurtág, um húngaro de 90 anos, que atualmente escreve sua primeira ópera para o Festival de Salzburg (Áustria). Trata-se, explica Nassif, de 11 peças, a maior parte delas de meio minuto, trabalhando o silêncio e os gestos musicais. “É um compositor que consegue criar um mundo musical muito especial, concentrado, que evoca toda a música do século 20”, avalia, acrescentando que a peça sugere mais uma trama complexa de intertextos do que citações, ainda que essas existam. Mais: na segunda parte do programa, as obras são apresentadas na ordem inversa da apresentação na primeira parte.
Temas abordados minuciosamente, de Erik Satie (1866-1925), é a terceira peça do programa. Foi escolhida por ser um compositor que se vale da fragmentação. A atomização das estruturas sonoras soa fluente diante do trabalho de György Kurtág, na avaliação de Nassif. “É uma música agradável harmonicamente, mas com cortes quase cinematográficos”, afirma. E também o trabalho de um compositor “surpreendentemente pouco tocado”, diz, em referência a Satie, autor independente que troca o mundo burguês, inclusive musical de Paris, que sua família frequentava pelo subúrbio onde vai morar e atuar como pianista em um bar.
A última peça do concerto é de Alban Berg (1885-1935). “Impressiona como uma peça escrita aos 24 anos pode ser tão madura”, diz o intérprete. A composição rompe com a fragmentação sonora em favor de contínuo musical que “cobra fôlego” – do intérprete e do ouvinte. “É uma peça emocional. Apogeu do declínio da música de concerto e, ao mesmo tempo, muito moderna, intrincada, complexa, romântica”, analisa. O conjunto das obras, explica, é um convite à fruição de composições que, trabalhando com sons e silêncios, chamam à audição ativa. “Uma escuta sem preconceitos é importante em mundo conturbado, de posições polarizadas, sem diálogo e em que se ouve pouco”, argumenta.
Músico procura trazer o passado para o presente
Rafael Nassif tem 32 anos. É de Juiz de Fora. Foi criado em Cataguases. Formou-se em Belo Horizonte e na Alemanha. Vive e trabalha em Granz (Aústria). É compositor, performer/pianista e curador de concertos (foi um dos criadores do programa Eu Gostaria de Ouvir, voltado para a difusão de jovens compositores). Quando adolescente, estudou composição com Almeida Prado e Marlos Nobre, informalmente. Ganhou prêmios na Alemanha, no Japão e nos Estados Unidos, além do Brasil.
“Como escrever música é uma atividade mental intensa, subir ao palco equilibra o tempo que se passa imaginando como vai soar o que você faz, complementa a atividade de compositor”, diz ele. No próximo dia 18, ele apresenta na igreja São Francisco, na Pampulha, em comemoração ao título de Patrimônio da Humanidade, a peça Em presença, sem expectativas.
Os estudos no exterior, conta, foram importantes. “Intercâmbio é positivo. Mas não acredito em receitas. Cada músico tem de ouvir sua intuição, refletir e ter coragem de seguir o próprio caminho, que pode ser ficar na cidade onde nasceu, emigrar, ir e voltar.” Com relação ao panorama musical austríaco, diz que, hoje, não é um lugar de vida musical tão intensa como na Alemanha. E que, no momento, existe a preocupação de retomar a posição de país que atrai compositores, inclusive com programas de apoio a eles, como o conduzido em Viena pelo espaço alternativo Echo Raum.
Ele cita o foyer do novo teatro de Granz como um lugar onde gostaria de tocar na Áustria. O motivo, além do fato de ser um espaço para música experimental, é a acústica do lugar, diz ele. “Grupos de câmara, no Brasil, sofrem com a questão da acústica dos teatros. Todos são concebidos para música amplificada. Quando se toca piano ou flauta, soa estranho, mas não é culpa do instrumentista.” Elogia o teatro da Fundação de Educação Artística pelos cuidados com a acústica.
O gosto pelo moderno e contemporâneo vem junto com a defesa de audição ampla da música, sem ficar separando antigos e novos. “É tudo música. O que precisamos é de interpretações que tragam os autores do passado para o presente”, acredita. Por que ouvir música contemporânea? “Precisamos desenvolver escuta para o desconhecido. Pode, ocasionalmente, revelar algo de nós que não sabíamos”, responde. E acrescenta, com certa ironia, sobre os compositores atuais: “São pessoas com quem você pode entrar em contato por e-mail, mandando um abraço e dizendo que gostou do que fazem. O que não é possível fazer quando se trata de Mozart”.
RAFAEL NASSIF INTERPRETA JOHN CAGE, GYÖRGY KURTÁG, ERIK SATIE E ALBAN BERG
Hoje, às 19h, na Fundação de Educação Artística, Rua Gonçalves Dias, 320, Funcionários, (31) 3224-1744. Ingressos (vendidos a partir das 18h): R$ 20.