Japaraíba - Era 2008 quando Cíntia Lopes concluiu que não havia nada para se fazer em Japaraíba, município com cerca de 4 mil habitantes localizado na região do Alto São Francisco, a 229 km de Belo Horizonte, onde ela vive. Mas não ter muito o que fazer era sinal de que havia, sim, muito a ser feito. E assim nasceu, no ano seguinte, a Ascult (Associação Comunitária Cultural de Japaraíba), que hoje calcula ter atingido 10% da população da cidade com suas aulas de música.
Como uma criança que quer correr antes de aprender a andar, a Ascult já “começou com tudo: aula de violão, de flauta, de voz, ballet. O que a gente conseguia fazer a gente fazia”, diz Kôka Lopes, amiga de Cíntia e sua parceira na empreitada. “Até a gente aprender a se organizar enquanto associação passou muito tempo, a gente deu muita cabeçada”, afirma.
Para arrecadar os R$ 500 necessários para registrar a ata de fundação da entidade, elas realizaram uma promoção com uma arte que já possuíam: a culinária. Com a venda do macarrão na chapa conseguiram levantar o capital necessário. Cíntia e as suas companheiras carregaram caixas de som, botijão de gás, fornos. Cíntia nem imaginava que estava grávida. Meses depois nascia Pedro Antônio.
Com a evidente atração dos frequentadores da Ascult pela música, nada mais natural que fosse criada uma banda. Entretanto, faltava quem tivesse a iniciativa, faltavam os instrumentos, só não faltava a vontade. Numa conversa com o antigo prefeito da cidade, José Antônio de Miranda (DEM), Cíntia sugeriu a criação de uma banda com o argumento de que as comemorações de 7 de setembro se avizinhavam.
“Convidamos o pessoal de Arcos (cidade vizinha), da banda Som e Arte, e fizemos um evento batizando a banda, sem a banda nem mesmo existir, sem instrumentos, sem nada. Só tinha o nome: banda Arco de Sol. Então o prefeito se comprometeu publicamente (com a criação da banda)”, diz Cíntia, com ar vitorioso.
Entre a licitação e a chegada dos instrumentos, o 7 de Setembro já estava próximo. Haveria apenas três meses para os ensaios. Um apoio vindo da vizinha Formiga foi fundamental. Gibran Zorkot, então diretor da Escola Municipal de Música Eunésimo Lima (EMMEL) convidou alguns professores e percorreu os 60 km que separam Formiga, sede da escola, de Japaraíba. “Fizeram um mutirão para ensinar os meninos a tocar e no 7 de setembro apresentamos seis músicas”, recorda Cíntia. Hoje o grupo circula por cidades da região, apresenta-se em eventos culturais, empresariais e em casamentos.
CADEIA Há um ano e meio a Ascult ganhou sede própria. Ela divide o espaço onde funcionava a cadeia de Japaraíba com uma entidade de produtores rurais. As grades das extintas celas foram substituídas por uma parede que divide os espaços. No lugar de pessoas encarceradas, agora ficam expostos ali violões, pendurados em suporte no corredor. Na entrada, uma pequena biblioteca com a sugestão: “Enquanto espera a aula, leia”. Nas paredes, notas musicais. A sala em que são feitos os ensaios tornou-se pequena para o número de alunos. “Eles custam a mexer os braços. Nos dias quentes, sofrem. Mas ter este espaço é uma conquista. Não dá pra reclamar não”, diz Cíntia.
Na varanda recém-construída ocorrem aulas de ballet e dança do ventre. Até o computador que fica na salinha da recepção tem sua história. Em 2013, Sandro Maílson inscreveu uma foto no concurso Paisagens de Minas, promovido pelo Estado de Minas. A imagem de uma amiga voltando da cachoeira, a bicicleta e a moça escondidas na poeira vermelha, ficou entre as finalistas. E assim ele pôde escolher uma entidade que receberia o computador como prêmio. Nem precisou pensar duas vezes para optar pela Ascult. De doação em doação, tudo foi se estruturando. “Até o padre doou o teclado da igreja”, comenta Cíntia, que cedeu uma geladeira velha “para ajudar os meninos quando está muito quente”.
Jordane Chaves, de 24 anos, professor da associação desde 2011, foi uma criança “que aprontava muito”, segundo diz. Nascido em Ouro Preto e radicado em Cláudio, ele foi acolhido pelo projeto Dando Cordas. “Se eu não tivesse esse contato (com a música), realmente não sei onde estaria. Isso mudou os rumos da minha vida completamente. Nunca teria me imaginado professor.”
O rapaz comenta que no início tinha receio, por se considerar muito jovem para ministrar aulas. A resistência foi vencida pela acolhida que recebeu em Japaraíba. “Foi meu primeiro emprego como professor de música. A gente fica com medo no início, mas, felizmente, os próprios alunos me acolheram bem”. Hoje, acredita que é pela pouca idade que tem tido um relacionamento amistoso com os estudantes.
Há casos semelhantes ao do professor entre seus alunos. Um deles tinha histórico de ocorrências no Conselho Tutelar. Sua mãe, Graciana Aparecida, chegou a levar o rapaz a um psicólogo e pedir “pelo amor de Deus por algum remédio” que o acalmasse. Foi por indicação de uma professora que ele foi à Ascult. Começou com aulas de violão, mas não era isso o que queria. “Ele pegava umas latas velhas na casa da avó e formava uma bateria no quintal”, lembra a mãe.
Hoje, aos 16 anos, se apresenta como baterista em grupos evangélicos e em eventos em cidades da região. A música foi o refúgio para sua inquietude. Dedicado, provou-se competente instrumentista, passando pela bateria, guitarra e baixo. “Quem dera todos os jovens tivessem essa oportunidade”, diz Graciana.
Não só crianças encontram refúgio na música: aos 50, Maria Rosilene Alves procurou a Ascult para vencer a depressão. Primeiro, fez aulas de flauta. “No início, tinha muitas dificuldades para memorizar a parte teórica, mas aquilo foi tão bom para mim que ficava ansiosa pelo próximo ensaio”, lembra. À medida que tomava gosto, passou a estudar trombone. Então foi convidada a participar da banda. “Faço aula de flauta em um dia, trombone em outro e participo dos ensaios da banda em outro. Três dias por semana tenho essa terapia”, comenta.
O envolvimento com a música trouxe bons resultados para Maria Rosilene. “Aos poucos, fui deixando de ter que usar antidepressivos. Desde os últimos dois anos o meu remédio é a música”. Além de continuar estudando, ela adotou alunas carentes, fazendo doações à entidade para garantir a educação musical delas.
Projetos incluem musical
Os primeiros anos da Ascult não foram fáceis para a presidente da associação. Além de se descobrir grávida, Cíntia precisou lidar com a morte do marido. Foi na associação que encontrou forças. “Mergulhei de cabeça mesmo”, diz. No início, sem subvenção da prefeitura, a entidade se manteve com bingos e promoções. No ano seguinte, passou a receber R$ 1.400 da administração municipal. O valor foi aumentando gradativamente, “à medida que foram conhecendo e confiando no trabalho”. Há três anos, têm uma verba fixa de R$ 15 mil anuais.
Em abril passado, Cíntia recebeu medalha de honra ao mérito dada pela Câmara dos Vereadores. Serviços prestados? Para ela, não. “A gente nem vê como uma contribuição. A gente faz isso porque gosta. É a nossa pescaria.”
Com a subvenção municipal, a Ascult consegue pagar pelas aulas de música, que incluem instrumentos de cordas, sopro e percussão. O ballet e a dança do ventre são mantidos pelas contribuições que recebem dos próprios alunos. “Eles fazem doações num envelope, tudo anônimo. Podem ajudar com até R$ 30. Mas ninguém é obrigado, ninguém deixou de estudar por não poder pagar”, diz a presidente da associação.
“A crise fez a gente reduzir muita coisa. Estamos em um momento muito difícil”, comenta Cíntia. Entretanto, fechar as portas está fora de cogitação. “Nem se a gente quiser a gente pode abandonar o barco agora, porque a gente criou um compromisso social. Não pertence mais à nossa vontade continuar ou não.” A expectativa é que uma “festa julhina”, a ser realizada neste mês, ajude a arrecadar fundos. Para o final do ano, Cíntia sonha realizar um musical que envolva toda a cidade.