Numa tradução livre, “I still do” significa “eu ainda faço”. Nada mais simbólico que o guitarrista inglês Eric Clapton tenha escolhido esse nome para seu 23º álbum de estúdio. Aos 71 anos, louvado e reverenciado como o “Deus da guitarra”, Clapton deixa claro que ainda toca por prazer e dá-se o luxo de escolher compositores que o influenciaram e canções das quais gosta para regravá-las com um toque bastante pessoal, em releituras muitas vezes surpreendentes.
Desde a capa, um retrato de Clapton pintado por Sir Peter Blake, artista responsável pela capa de Sgt. Pepper’s lonely hearts club band, dos Beatles, passando pela produção de Glyn Johns, com quem o guitarrista já havia trabalhado no álbum Slowhand, de 1977, I still do se revela um disco feito com extremo carinho e criatividade. É um trabalho homogêneo e clean, no mesmo nível de Old sock, lançado em 2013.
A faixa de abertura, Alabama woman blues, do bluesman Leroy Carr, morto em 1935 e um dos precursores do ritmo, traz Clapton mergulhado nas raízes do blues, numa canção melancólica e, ao mesmo tempo, forte. A novidade é a presença de um acordeom em destaque, ao lado dos solos do guitarrista, numa pitada generosa de música cajun, tradicional da Louisiana, em um blues.
Em Can’t let you do it, de J. J. Cale, o arranjo é moderno e dançante, lembrando o melhor de Clapton dos anos 1980 e 1990, numa canção mais eletrificada, mas preservando o espaço para os solos do instrumentista. I will be there, do irlandês Paul Brady, mantém o romantismo da canção original, com uma roupagem bem mais leve e alegre, uma balada em que Deus divide os vocais com o também guitarrista Angelo Mysterioso.
Entre as 12 canções do álbum, Clapton incluiu duas composições suas, apresentadas em sequência: Spiral e Catch the blues. Enquanto Spiral tem a força do blues bem definida, remetendo aos riffs de incontáveis clássicos do guitarrista, Catch the blues mostra o lado mais acústico de Clapton, com violão e apoio de um vocal feminino. É a faixa, por assim dizer, com maior potencial de se tornar um sucesso nas emissoras FM.
Cypress grove é outro tributo de Eric Clapton a um pioneiro do blues. O autor, Skip James, nasceu em 1902, no Mississipi, e é um dos mais representativos compositores do delta blues. O toque pessoal no arranjo fica por conta, mais uma vez, da presença do acordeom, mas os solos de Clapton servem para lembrar porque os jovens ingleses picharam as paredes de Londres dizendo que ele era Deus, na década de 1960.
ROMANTISMO Little man you’ve had a busy day, canção dos anos 1930 que se perpetuou ao longo do tempo com gravações de um sem número de cantores e instrumentistas, incluídos aí os jazzistas Chet Baker e Art Tatum, ganha em I still do um arranjo intimista e com a dose exata de romantismo. Apenas Clapton e o violão, pois não é preciso mais nada.
Em Stones in my passway, temos Clapton, de novo, gravando Robert Johnson. O fascínio do instrumentista inglês pelo mais importante bluesman da história não é segredo para ninguém. A canção incluída no álbum já foi interpretada à exaustão por ele em shows, mas a versão para o disco tem mais peso, é mais visceral.
I dreamed i saw st. Augustine, de Bob Dylan, gravada originalmente em 1967, no álbum John Wesley Harding, e que se tornou sucesso na voz de Joan Baez, é uma genuína música de protesto, de inspiração folk, mas a dupla Clapton/Johns lhe deu uma roupagem inesperada e extremamente inventiva. O acordeom de Dirk Powell serve doses ainda mais transbordantes do ritmo cajun. O momento mais criativo e saboroso de I still do. Na sequência, quase como um lamento gospel, I’ll be alright é uma canção tradicional de autor desconhecido. Clapton proporciona uma viagem sonora a uma igreja protestante do Mississipi, do Alabama ou do Tennessee, com seu virtuosismo no slide dando o tom melancólico que a canção pede.
Somebody’s knockin’, a penúltima música de I still do, é a segunda canção de J. J. Cale incluída no álbum. Cale morreu em 2013 e é o autor de dois dos maiores sucessos da carreira de Eric Clapton: Cocaine e After midnight. É outra faixa que deve ser ouvida diversas vezes, pois a guitarra sagrada de Clapton, como disse uma vez George Harrison, realmente tem dons divinos.
Para fechar o disco, I’ll be seeing you, da década de 1930, composição de Irving Kahal e Sammy Fain. Kahal morreu muito jovem, e sua música foi gravada ao longo das décadas por Billie Holiday, Frank Sinatra, Tony Bennett, Brenda Lee, Rod Stewart e até Iggy Pop. É uma canção romântica e singela, que o arranjo soube aproveitar muito bem. O acordeom de Powell ganha ares sofisticados, quase parisienses, e Clapton lhe dá uma interpretação lenta e suave, mas sem esbarrar no exagero.
I STILL DO
De Eric Clapton
Clapton Bushbranch/
Surfdog Records
Preço médio: R$ 30