O polivalente Zeca Baleiro ataca novamente. Aos 50 anos e prestes a celebrar duas décadas de carreira em 2017, o maranhense dos jogos de palavras e das parcerias nem sempre óbvias acaba de lançar Era domingo, seu décimo disco autoral.
Pela segunda vez, Zeca mostra como trabalhar em turma sem perder a unidade. Chamou 13 produtores para criar 11 faixas – um conjunto de variedades, boa parte delas fusões de ritmos inclassificáveis. Há “baladas cortantes” (Era domingo, Balada do oitavo andar e Homem só), quase raps (De mentira e Desesperança), ska (Ela parou no sinal), reggae (O amor é invenção), jazz cigano (Ultimamente nada), baião-canção (Pequena canção), pop africano (Deserta) e uma paródia do universo gangsta (Desejo de matar).
Com pitadas de Pernambuco, Caribe e Pará no quase frevo Ela parou no sul, humor entre Tarantino e Angeli no quase surf rock Desejo de matar e um certo pessimismo em Homem só, Zeca reflete o atual estado de espírito do país, onde a confusão urbana, suburbana e rural se mistura a protestos, leituras equivocadas da realidade e demonstrações explícitas, de vários lados, da máxima “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Como é de costume, a música de Zeca é radiofônica, mas não óbvia. Faz pensar, sem apelar para o panfleto. Faz sorrir, sem abusar da inocência ou do sarcasmo. Enfim, fotos digitais de alma analógica de quem passa a noite em claro em hotel, flagra a musa na rua, registra o fim de tarde com balada triste, anda pelas ruas molhadas ou cava a memória diante de um filme B.
Ele compõe também balada de ninar adultos, deixa escapar um grito de desesperança e indaga se o amor é invenção da indústria cultural. No fim do disco, a cigana Ultimamente nada traduz um estado de espírito que ele mesmo classifica, como na cena final de um roteiro de cinema: “O homem se recolhe, se cala, ouve os rumores da cidade. Está em paz, ardentemente. Aprendeu a gozar”.
Em agosto, Zeca Baleiro traz o novo show ao Palácio das Artes. “Duas faixas do disco foram gravadas em BH, Deserta e Balada do oitavo andar, produzida pelo meu amigo Rogério Delayon”, conta.
Treze produtores em 11 faixas. Como foi o processo de escolha do repertório e como adequar cada produtor a cada faixa?
Venho trabalhando no disco há um ano, pelo menos mentalmente. Esse processo é muito intuitivo e, às vezes, rola um certo risco, tipo “música certa para o produtor errado” ou vice-versa. Mas sinto que funcionou bem.
Como dar unidade? O que transforma tudo isso num álbum?
Essa tal coerência ou unidade que as pessoas cobram é algo muito subjetivo. Acho que as próprias canções têm que construir uma narrativa na origem. É isso que torna diferente o álbum de um apanhado de canções qualquer. Em alguns casos, essa história talvez só faça sentido para o próprio artista.
Como surgiram as parcerias com Marcelo Lobato (O Rappa) e Haroldo Ferretti (Skank)?
Há tempos faço planos de trabalhar com Lobato, somos amigos. Enfim, calhou de surgir uma canção, Homem só, que achei que ficaria bem nas mãos dele. Sou fã da turma do Skank também. Há tempos planejava chamá-los para uma parceria. Chamei o Haroldo e o Henrique (Portugal) para produzir Deserta, parceria minha com o Lokua Kanza. E arrasaram.
E a “parceria” com Sousândrade? De onde veio?
Estava trabalhando numa base que me foi enviada por meu novo parceiro, o Paulo Monarco, que me deu a melô e disse: “Faça uma letra à la Meninas dos jardins, pode ser.? Comecei a trabalhar numa ideia de rap-canção, mas faltava o refrão. Mais ou menos nessa época, li Harpas selvagens, do Souzândrade, e lá achei os versos de Desesperança, que caíram como uma luva para a canção.
“O amor foi feito pra vender pacotes de emoção”? Como fazer canções de amor na era da pressa virtual?
Difícil. Primeiro, há que se entender o que é amor nesta era virtual. Pergunto isso em várias canções desse disco.
Você tem cruzado o país para divulgar o novo CD. Como está sendo o retorno?
Foram apenas cinco shows até agora, mas tem sido bom. Há um clima estranho no ar, uma vibe de fim de mundo, mas a música ajuda a restaurar a (des)ordem e a saúde mental.
Como você vê o atual momento político do país? Para onde vamos?
Adoraria saber, mas não sei. Estou temeroso, sinto que vêm tempos obscuros por aí.
E a polêmica em relação ao Ministério da Cultura, quase extinto pelo governo Temer?
Confusa. Um dos problemas destes tempos é que todo mundo é formador de opinião – se no passado já achava esse termo esnobe, agora acho patético. O fato, democrático na origem, de todos poderem se expressar está levando a uma grande confusão de conceitos. Todo mundo fala e ninguém entende nada.
Como você vê a cena atual da música brasileira? Cem por cento de sertanejos nas paradas e milhares de novidades que o grande público não conhece...
Tétrica. Criaram um monstro. O problema é o monopólio, não a existência desses gêneros, que também são legítimos.
E a cena mundial?
Nada alvissareira.
No show, você recria David Bowie e Marina Lima. O que continua valendo como referência?
O de sempre (risos).
Em seu novo CD, Bob Dylan relê Sinatra e atinge posições nas paradas americanas que nunca conseguiu com seu próprio repertório. É o fim do mundo como o conhecemos?
Peguei esse disco assim que saiu. Conheço toda a obra do Dylan e posso dizer: é um dos discos mais bonitos que ele fez. E cheio de significados. Pode-se dizer que é “o melhor pior cantor de todos os tempos” cantando o melhor de todos, um autor cantando um crooner... Muito tocante esse disco. Sim, é o fim do mundo (risos).
ERA DOMINGO
. De Zeca Baleiro
. Som Livre
. Preço médio: R$ 25