Ao contrário de Belchior, o homem que caiu no mundo para fugir do passado, João Gilberto, que hoje completa 85 anos, refugia-se do mundo dentro de si mesmo. Um autoexílio de uma vida inteira no único esconderijo onde ninguém pode encontrá-lo. É lá que passa manhãs, tardes e noites, um confortável recanto medindo 1,73 metro de voz baiana, cabelos ralos, gestos lentos e memórias afetivas acionadas por horas seguidas de violão no colo.
O mais perto que os indesejados chegam de sua paz é por telefone. João nunca atende, mas o telefone toca e seu tocar faz com que o som reverbere pelo apartamento, transpasse os tímpanos e atinja o cérebro. É o máximo que um estranho participa de sua vida, produzindo ruído em um dos sistemas auditivos mais seletivos do mundo, que só termina depois da sétima badalada, quando a invejável secretária virtual de João Gilberto atende cheia de ironia fina: “Essa caixa postal está cheia, tente chamar este número mais tarde. Obrigada por ligar para a Tim”.
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O mito de João tem a força de blindá-lo. A maioria dos amigos não sabe nada sobre ele e, quem sabe, reafirma sua fidelidade no silêncio. “Meu caro, não tenho notícias dele há tempos”, diz Nelson Motta, do restrito anel dos confiáveis. Claudia Faissol, jornalista com quem João tem uma filha, é desconfiada e também não se pronuncia. “Mande um e-mail que te respondo daqui a pouco”, diz, prometendo algo que jamais vai cumprir. Porteiros e vizinhos parecem viverem sob um pacto de silêncio.
Aos 85 anos, João Gilberto não deve mais fazer shows e, com exceção do álbum João, Voz e Violão, de 2000, nenhum outro de seus 16 discos gravados com esmero está em catálogo nas lojas do Brasil. Pior que o exílio físico é o artístico. Enquanto seus advogados travam há anos na Justiça uma guerra de muitas batalhas contra a administração de seu material pela EMI, adquirida pela Universal, João segue sem previsão de lançar discos por companhias ou de forma independente. É mais fácil encontrar seus álbuns reeditados no Japão ou na França. Juazeiro da Bahia, onde ele nasceu, vai festejar seu filho mais ilustre, como faz todos os anos. Mas o apartamento de João estará hoje tomado apenas pelo violão. “Ele não gosta de festa”, diz a ex-mulher Miúcha. E, quem sabe, por uma rara interferência do mundo externo. “Vou levar seu jornal para ele ver. Se ele gostar eu aviso.”
DISCO
Enquanto não aparece qualquer notícia de show ou disco novo, chega ao mercado externo o disco 'Getz/Gilberto ‘76', produzido por Todd Barkan e Zev Feldman, via Resonance Records. São os melhores momentos da temporada de uma semana que João fez ao lado do saxofonista Stan Getz em maio de 1976 no clube de jazz Keystone Korner, em São Francisco. O projeto conseguiu passar pelo crivo do cantor.
Barkan era o proprietário e diretor artístico da casa, enquanto Feldman, que dirige a Resonance, há meses tenta lançar edição brasileira do álbum com selos locais. “É uma vergonha que as gravadoras no Brasil tenham de pagar impostos tão altos para lançar um disco. Continuamos tentando encontrar um parceiro, mas está difícil”, diz ele. A edição internacional do álbum está disponível em lojas virtuais, nos formatos de CD e vinil, e também no iTunes.