Ouça aqui as músicas do disco 'Ainda há tempo', de Criolo.
Chuva ácida, composta no início dos anos 2000, fala de desastre ecológico. “Mercúrio nos rios/ Diesel nos mares/ É, já fizeram sua parte/ E salvem o planeta...”, ironiza Criolo. O verso bem poderia ter sido feito para denunciar a recente tragédia do Rio Doce, provocada pelo rompimento da barragem da Samarco. “Tô pra ver um daqui jogar toalha/ Tô pra ver um daqui sucumbir”, canta Rael em Tô pra ver.
Com seu jeito zen, Criolo, de 40 anos, diz que o novo projeto nasceu despretensiosamente, fruto da vontade dele e de Ganjaman de finalmente apresentar o show que Ainda há tempo não ganhou há 10 anos. Naquela época, tudo era feito com muito sacrifício. O álbum de 2006, com pouco mais de uma hora, reunia 22 composições do rapper, “trabalho de toda uma vida”, ele diz. A versão 2016 e a turnê que agora chega a algumas capitais significam a concretização de um sonho.
“A gente queria mostrar a energia das canções, contar a história delas, mostrar que ninguém deve se afastar de seu sonho”, afirma Criolo. Naquele 2006, o músico “ralava” para gravar o primeiro CD. Nem sonhava que, cinco anos depois, estouraria com o CD Nó na orelha, conquistando o respeito de Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Zé e Ney Matogrosso. Virou parceiro desses ídolos.
O novo Ainda há tempo conta com respeitável tropa de choque, formada por alguns dos produtores mais talentosos do país. Tropkillaz, Nave, Ganjaman, Marcelo Cabral, Grou, Papatinho, Deryck Cabrera, Renan Samam e Filiph Neo, para usar um termo em moda, “ressignificaram” Demorô e É o teste, entre outros raps que fizeram a fama do Criolo Doido pré-Não existe amor em SP. Pilotada por Ganjaman e Marcelo Cabral, a faixa-título é uma “pedrada”, como se diz na cena hip-hop. Não se trata de coletânea vintage “sessão nostalgia”, nem de mero remix turbinado. Tudo soa oportunamente necessário. Criolo gravou tudo de novo. Disponível nas plataformas digitais, o disco pode ser baixado gratuitamente no site www.criolo.net.
Contundente como seus versos, o rapper se indigna com as atrocidades da política brasileira.
“Quem arquiteta tudo isso? O buraco é mais em cima”, indigna-se Criolo. “Enquanto os camisas amarela e vermelha se enfrentam nas passeatas, na quebrada se morre por causa da cor da pele”, desabafa. Criado na periferia paulistana, o músico fala do que viveu: amigos assassinados, a mãe, professora, ameaçada de morte. Em 2012, dos 30 mil jovens de 15 a 29 anos assassinados no Brasil, 77% eram negros, aponta a Anistia Internacional.
Porém, baixo-astral não é com ele. Criolo avisa: não é pessimista em relação ao futuro do Brasil. Reitera que seu disco é “de esperança”. Por longos minutos, fala de sua admiração pela juventude que ocupa escolas brasileiras e teve a coragem de se instalar no plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo para exigir educação de qualidade.
Para ele, é má-fé atribuir o movimento dos secundaristas a intenções politiqueiras. “Os meninos estão ocupando porque destruíram a nossa educação. Não tem argumento contra. Eles não querem que fechem essa escola que já está extremamente sucateada. Aqui não tem jogo de palavras: eles lutam para estudar”, reitera.
Professor por cinco anos, arte-educador por sete, filho e irmão de professores das redes estadual e municipal em São Paulo, Criolo diz que nada justifica a humilhação imposta à categoria, desvalorizada financeiramente e obrigada a conviver com a “ridicularização” de seu ofício. “Tudo foi tirado deles. Professor é sagrado”, defende Criolo.
Ao Brasil imobilizado pela intolerância, o rapper oferece candura, convocando todos a derrotar o ódio. “Quem tem noção das coisas/ Sente o peso da maldade”, constata ele no rap Ainda há tempo, enquanto o refrão (“Não quero ver/ Você triste assim não/ Que a minha música possa/ Te levar amor”) soa como mantra.
RIO DOCE
Com beats de Sala 70 – leia-se Caio Barreto –, a faixa Chuva ácida é aberta com palavras de uma líder da aldeia crenaque, em Minas Gerais. “A única coisa que a gente quer neste exato momento é que se faça justiça. Ela vai ter que recuperar este rio que está aí”, diz a índia, referindo-se ao desastre causado ao Rio Doce pela Samarco. “Aquilo foi uma faca no coração de Minas Gerais, uma faca no coração do planeta”, resume Criolo, lembrando que escreveu a canção há 20 anos. “Pouco mudou, não é?”, indigna-se. “Peixes mutantes invadindo o Congresso/ Vomitando poluentes (...)/ Terceiro setor, vem que tem dim dim/ Vendem a ideia de que são legais/ Nadar de costas/ Vai jacaré, abraça!”, diz o rap-manifesto.
120 anos de rap
Hoje à noite, Criolo, MC Dan Dan e DJ Marco apresentam o show Ainda há tempo durante festa no Bar do Marcinho, em Macacos, Nova Lima. “São 120 anos de rap no palco”, brinca o rapper, referindo-se ao trio quarentão que desde os anos 1990 batalha pelo hip-hop brasileiro. A turnê conta com visual idealizado por Alexandre Orion e os irmãos Gil e Pedro Inoue, com produções reproduzindo as quebradas, berço do hip-hop.
A festa de aniversário de Ainda há tempo, de certa forma, celebra o rap – “a raiz da coisa”, nas palavras de Criolo. “Como ele é forte, como te dá sustentação para visitar tantas e outras histórias musicais! Mais que marcar a celebração de 10 anos, a gente quer contar uma história”, comenta.
Mais centrado no formato ritmo e poesia, o disco não aposta tanto no diálogo com outros gêneros musicais, como Nó na orelha (2011) e Convoque seu buda (2014), álbuns que fizeram a fama de Criolo. Por causa deles, aliás, muita gente chegou a dizer que o paulistano nem é mais rapper, sobretudo depois de sua parceria com Ivete Sangalo para revisitar a obra de Tim Maia.
Criolo reiteira que as construções culturais lhe interessam. Esse também é o conceito da nova turnê. Ele explica que não se trata de resgatar o rap dos anos 1990. O hip-hop brasileiro busca seu próprio caminho, dialogando com o passado, mas ligado na multiplicidade musical que marca o mundo contemporâneo. Otimista, Criolo lista trabalhos dos rappers Rael, Rashid, Fioti e Projota que serão lançados este ano. “Ainda estou sob o impacto do último disco do Emicida”, conta.
O paulistano cobre de elogios o Duelo de MCs, evento de hip-hop realizado desde 2007 em BH. Em São Paulo, ele ajudou a criar a Rinha de MCs, que completou nove anos. “Tudo isso é muito bonito e importante: jovens valorizando a arte, fortalecendo a nossa energia”, conclui.
AINDA HÁ TEMPO
É o teste – Produção: Nave
Chuva Ácida – Produção: Sala 70
Tô pra ver – Com Rael; produção: Grou
Breáco – Produção: Deryck Cabrera
Até me emocionei – Produção: Sem Grana
Demorô – Produção: Papatinho
Vasilhame – Produção: Tropkillaz
Ainda há tempo – Produção: Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral
. Oloko Records
. Download gratuito: www.criolonet
CRIOLO
Bar do Marcinho. Estrada de Acesso, s/nº Macacos, (31) 3581-3736. Hoje, 20h. Turnê Ainda há tempo. Rap.
1º lote: R$ 100 (inteira) e R$ 50 (meia). 2º lote: R$ 120 (inteira) e R$ 60 (meia). Ingressos: www.sympla.com.br