Uma limonada bem ácida, mas muito saborosa, foi isso que Beyoncé ofereceu ao mundo na última semana, ao lançar na internet seu novo disco-filme, com 11 clipes em sequência, construindo uma narrativa forte sobre superação e libertação.
Reconhecida como fenômeno pop desde sua adolescência, quando apareceu vendendo milhões de cópias entre as garotas da Destiny’s Child, Beyoncé passou boa parte da carreira solo, iniciada em 2003, emplacando hits como Single ladies e Crazy in love, de letras fáceis, melodias grudentas e cantaroláveis, sensualmente coreografadas. Premiadíssima em várias edições do Grammy, a cantora se tornou ícone do universo pop e sucesso absoluto de vendas, com suas músicas invadindo comerciais, trilhas de filmes, festas e rádios. No entanto, a moça dos cabelos alisados de outrora parece ter dado lugar a uma mulher poderosa e atuante há algum tempo, usando sua formidável voz contra o preconceito racial.
No badalado show do intervalo do Super Bowl, maior evento esportivo dos EUA, em fevereiro deste ano, a performance da artista foi devastadora. Diante da maior audiência anual da TV norte-americana, a cantora e suas dançarinas se apresentaram vestindo o uniforme usado pelo Partido dos Panteras Negras, movimento político-social antirracista surgido na Califórnia durante os anos 1960. Na coreografia, elas reproduziram um X no gramado em homenagem a Malcom X, um dos principais líderes do movimento negro do país.
GUETOS O empoderamento negro, principalmente o da mulher, é a alma de Lemonade, e a combinação audiovisual mostra bem isso. Em boa parte dos vídeos, as referências à cultura “black” dão o tom, tanto nos figurinos e cenários, que transportam o espectador para os guetos de New Orleans e para as fazendas escravocratas do Sul dos Estados Unidos, quanto nos arranjos musicais que dialogam com o funk, o hip-hop, o blues e o soul. Em algumas letras, a mensagem é tocante. É o caso, por exemplo, de Forward, (Em frente, na tradução), a nona do disco, cantada em parceria com James Blake. As duas vozes poderosas são acompanhadas apenas por um piano, enquanto o clipe reúne pessoas mostrando fotos de familiares mortos pela polícia. “É tempo de escutar, é tempo de lutar, em frente”, diz a letra.
A memória da escravidão é escancarada em Freedom (Liberdade, em português), que conta com a participação do rapper Kendrick Lamar, sendo quase um hino de libertação. Apresentado no Super Bowl, o single Formation, sobre a formação da cultura negra na América do Norte, apesar de não estar inserido na sequência de clipes aparece nos créditos e completa o áudio. Mesmo nas faixas que não tratam diretamente sobre a causa racial, Beyoncé atua como porta-voz da mulher negra, como em Sorry, que trata do fim de um relacionamento e a superação de uma traição, onde ela diz que “ele deveria procurar Becky com seu cabelo bom”. Nos EUA, “Becky” é o apelido para Rebeca e frequentemente usado como uma gíria para se referir ao estereótipo da mulher norte-americana branca de classe média.
Para parte da crítica internacional e da enorme legião de fãs, outro grande impacto do disco é Beyoncé falando abertamente sobre traição em suas músicas. Tudo porque a estrela teve seu casamento com o rapper Jay Z colocado em xeque há dois anos pelos noticiários de todo o mundo, que especulavam um caso de adultério por parte do cantor. Na mesma época, o vazamento de um vídeo de Jay Z sendo agredido pela irmã de Beyoncé deu força aos rumores, mas o casal de celebridades foi a público e negou tudo, garantindo que a união, iniciada em 2008, continuava estável. Os dois inclusive aparecem juntos em algumas cenas de Lemonade.
AUTOCONHECIMENTO Baseada ou não em sua experiência própria, o disco se assume como “uma jornada de autoconhecimento e cura de todas as mulheres”. A narrativa de Lemonade coloca as mulheres negras como protagonistas em uma história de superação de subjugamentos, não apenas nas relações amorosas, mas também por parte da sociedade.
O que poderia ser só mais um trabalho que questiona relacionamentos, expondo frustrações e superações amorosas, com mensagens facilmente assimiláveis e comercializáveis, torna-se diferenciado quando uma causa maior é inserida no contexto. No caso, o empoderamento feminino e negro. Se no ano passado foi a vez de Lady Gaga fazer o mundo parar e refletir quando lançou Til it happens to you, que grita contra os casos de abuso e assédio sexual não denunciados nos Estados Unidos, agora é a vez de Beyconé mostrar que música pop também tem algo importante a dizer com seus clipes hollywoodianos e produções milionárias – Lemonade foi inicialmente orçado em US$ 1,35 milhão – feitos para estourar em todas as paradas de sucesso, vender muitas cópias, ganhar muitos Grammies e lotar estádios durante as turnês.
Lemonade foi o sexto álbum de estúdio de Beyoncé. Exibido em primeira mão pela HBO, o musical foi lançado na plataforma de música por streaming Tidal, que pertence a Jay Z, sendo a execução e download exclusivos para os assinantes do aplicativo. A turnê mundial, que carrega o nome do single Formation, começou na última quarta-feira, em Miami, quando a cantora homenageou Prince, interpretando algumas canções do astro recém-falecido. Por enquanto, o tour tem datas marcadas apenas na Europa e nos Estados Unidos. A última passagem de Beyoncé pelo Brasil foi em 2013. Na ocasião, ela chegou a se apresentar em Belo Horizonte, na Esplanada do Mineirão..