Pelo telefone do seu quarto, num hotel em Caracas, capital venezuelana, o pianista belo-horizontino Rafael Martini desabafa ao final de uma hora de conversa:
“Aposto que as pessoas vão me olhar diferente quando eu voltar.
Não há qualquer deslumbre (nem ressentimento) na fala dele, que voltou recentemente de uma semana no país vizinho para, finalmente, gravar sua Suíte onírica.
Entrou em estúdio com a Orquestra Sinfônica da Venezuela e o coral montado só para a gravação, incluindo membros do Coro de Ópera do Teatro Teresa Carreño, sede da orquestra. A batuta ficou na mão do português Osvaldo Ferreira (fundador e regente da Sociedade de Concertos de Brasília) e a produção musical a cargo de Hildemaro Álvarez.
Escrita dois anos atrás em parceria com Makely Ka, a obra tem seis movimentos e foi concebida para orquestra sinfônica, coral lírico e o sexteto de jazz de Martini, integrado por ele, Trigo Santana (baixo acústico), Felipe Continentino (bateria), Joana Queiroz (clarinete e clarone), Alexandre Andrés (flauta) e Jonas Vitor (saxofone).
Foi encomendada pelo Savassi Festival e a estreia ocorreu em agosto do mesmo ano, no Grande Teatro do Palácio das Artes, com o Coral Lírico de Minas Gerais, a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e o seu então maestro Marcelo Ramos. Depois disso, a batalha começou.
“Desde então, procurei maneiras de financiar essa gravação.
Ainda em 2014, considerou realizar a gravação na Venezuela, país conhecido por sua vibrante cena musical erudita – e por ser terra de Gustavo Dudamel, maestro-celebridade de 35 anos.
Tornou-se necessário, então, ter dinheiro suficiente para pagar também passagens aéreas e diárias de hotel, além de cachês, aluguel de estúdio, mixagem, masterização e prensagem. No fim das contas, viabilizou o projeto por meio de quatro fontes de recursos: edital Música Minas, apoio direto do BDMG, Fundo Municipal de Cultura e crowdfunding.
A parte do sexteto foi gravada este mês no estúdio da família do flautista Alexandre Andrés, no interior de Minas, fazendo com que apenas Martini e o maestro convidado para a projeto tivessem de viajar.
“A Venezuela vive crise das piores no mundo. Aqui no hotel, que é bom, o almoço custa US$ 5. As coisas são muito baratas para nós, mas não para eles. E seria ainda mais se fosse dois anos atrás. A alta do dólar também fez esse projeto demorar. Quando comecei a negociar, era um preço. Agora é o dobro. A orquestra me cobra em dólar”, diz.
Com a presença do pianista e do maestro, foram nove ensaios em quatro dias, mas os venezuelanos vinham estudando há meses, pois receberam as partituras antecipadamente.
“Encontrei muito profissionalismo aqui. Tem muito músico se formando aqui e só Caracas tem sete orquestras profissionais. O nível é muito alto. A filarmônica mineira, por exemplo, que deve ser a segunda ou terceira do Brasil, é recheada de estrangeiros. Isso é ótimo para a cidade, mas mostra a diferença em relação ao Brasil na formação de músicos”, observa.
Ciente de que há, no país vizinho, “propaganda exacerbada” em torno disso (sobretudo enfocando o El Sistema, programa de formação musical do governo), Martini relativiza: “Algumas orquestras se ressentem de falta de investimento do governo, incluindo a com que gravei. Ela não faz parte do El Sistema, que é voltado para jovens carentes. As demais vivem com pouco recurso e todos aqui falam em superar a crise com criatividade. Eles sabem que não estão ficando ricos com este trabalho, mas que poderá abrir portas em médio ou longo prazo”.
O pianista pretende voltar a Caracas – desta vez com seu sexteto – para concerto de lançamento do disco. “É mais complicado trazê-los para cá, mas não impossível. Não é uma lei de incentivo que fará isso e o caminho terá de ser outro.
Na sua avaliação, portas podem se abrir no Brasil com o disco na mão, como encontrar orquestra que queira tocar a obra e receber outras encomendas. “Até agora, era só um monte de bolinhas na partitura”, brinca. No momento, ele negocia edições do álbum aqui e no Japão.
Músico critica repertório velho
Inevitavelmente, Rafael Martini passou a questionar mais o papel das orquestras no Brasil. “O que elas querem? Tocar só música canônica, secular, para parcela seleta da sociedade? As orquestras são estatais e deveriam prever projetos inovadores, que saiam daquela coisa de tocar só músicas de compositores que morreram há mais de 150 anos. É muito raro fazerem algo fora disso. Não é sustentável tocar só música erudita europeia. É questão de valorizar as orquestras. Para continuar a existir, não podem tocar só Beethoven”, critica.
Por acreditar que orquestras têm o papel social de fomentar a música feita no seu tempo e lugar, ele cita o caso da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) como “exemplo máximo”: “Tem excelentes músicos, mas sem relação real com a música feita no país, no nosso tempo. As orquestras não ficarão, é claro, tocando só música de brasileiro, pois nem temos tanto para isso, mas é preciso ter mais equilíbrio”.
Na contramão, faz elogios, com resalvas, às duas principais orquestras mineiras. “O projeto Tinta Fresca, da filarmônica, é louvável, e ano passado soube que eles encomendaram peças a compositores vivos, no caso o André Mehmari e o Oiliam Lanna. É uma luz no fim do túnel, mas ainda acho pouco. Já a sinfônica fez parceria com o Savassi Festival no sentido de tocar músicas de compositores contemporâneos, o que também é louvável, mas não ocorre mais”, afirma. (ETG)
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