Ao iniciar seu processo de desaparecimento, quase dez anos atrás, Belchior deixou algumas pistas, foi visto raras vezes e praticamente não deu entrevista. O cantor e compositor cearense, que completará 70 anos em outubro, foi fotografado pela última vez em Porto Alegre, em 2012, já com a carreira totalmente interrompida. No quesito discografia, o panorama é ainda mais desolador: os últimos lançamentos são invariavelmente coletâneas. E a última vez que o artista entrou num estúdio foi justamente em Belo Horizonte. O ano era 1999.
O álbum em questão é 'Um concerto a palo seco', que gravou com o violonista mineiro Gilvan de Oliveira no estúdio Bemol. Inclui 12 faixas de Belchior, como Alucinação, Tudo outra vez, Medo de avião, Divina comédia humana e De primeira grandeza, todas arranjadas por Oliveira. Só voz e violões. Na época, ambos trabalhavam com o produtor cultural Jackson Martins, que os apresentou e assinou a produção executiva do disco, relançado em 2006 apenas com o nome Acústico e com duas faixas extras. “A ideia foi minha. Eu trabalhava com Belchior havia 14 anos e fizemos esse formato com vários instrumentistas. Com o Gilvan deu muito certo”, diz Martins.
“Belchior tinha acabado de gravar o disco Auto-retrato, com arranjos do Ruriá Duprat, e queria apresentar as canções como foram feitas, apenas ao violão. A canção nua, sem orquestra ou banda, preservando para o ouvinte a obra quase no estado puro. Os grandes momentos dos grandes artistas foram assim. João Gilberto fez isso, Baden Powell, Toquinho. Caetano e Gil voltaram a fazer isso também. Procurei ser sofisticado, mas sem interferir. Tem solos e até alguma influência espanhola, como em Galos, noites e quintais”, conta o violonista.
Inicialmente, era para ter sido um álbum apenas de Belchior, acrescenta ele, mas as performances de ambos não deixaram dúvida de que se tratava de um trabalho a ter a capa assinada pelos dois. “A voz dele ficou muito forte, presente. Tudo bem captado, um momento muito feliz. Na semana da gravação, a voz dele não deu nenhum problema. Ele não fazia nenhuma preparação, cantava a palo seco. Brincava que tinha voz de jegue, voz de homem, e não me lembro dele pedir nada de especial antes de gravar”, afirma.
REPERTÓRIO A escolha do repertório foi do próprio Belchior, e as gravações levaram menos de uma semana. Ficaram de fora três músicas: Ismália (poema do mineiro Alphonsus de Guimaraens musicado pelo cearense), Doce mistério da vida (versão de Alberto Ribeiro para a música de Victor Herbert) e Aparências (Márcio Greyck); as duas últimas são o bônus do relançamento de 2006. Nos intervalos, o clima era de camaradagem, revela Oliveira: “Eu, ele e o Dirceu Cheib, um dos donos do estúdio, fumávamos cachimbo e na hora das confabulações ficávamos cada um com sua ‘pipa’”.
A propósito, o violonista amplia o elogio: “Belchior era muito legal, gostava de bons vinhos, de sair à noite. Era quase vegetariano, só comia peixes e frutos do mar. Ele sempre foi muito sociável. Em toda cidade, tinha gente que o conhecia e ele dedicava tempo para conversar. Era impressionante a paciência dele em receber as pessoas após os shows, sem frescura. Recebia todos e não reclamava de assédio nesse sentido. Sempre foi muito tranquilo trabalhar com ele. Um parceiro de viagem, boa prosa, intelectual”.
Oliveira e o cantor viajaram juntos pelo Brasil para tocar durante cinco anos. Nessa época, Belchior andava às voltas com a tradução da Divina comédia, clássico de Dante Alighieri. “Viajava com uma mala de livros que pesava mais do que o nosso equipamento. Lia o tempo todo, todos os assuntos”, lembra. Talvez pelo grande conhecimento de literatura, teoriza, suas canções ainda sejam relevantes: “Músicas como A palo seco não têm idade. Os problemas são atuais e as abordagens, diferentes. Ao falar de política, por exemplo, não é panfletário”.
Belchior não fazia exigências em relação aos locais das apresentações ao lado do violonista. “Era o lugar que o produtor conseguisse, com boas condições de trabalho”, afirma. O mais importante para o artista, diz o mineiro, era magnetizar a plateia. Nas músicas em que o cantor não tocava violão, costumava ficar mais solto como intérprete, livre para pôr em prática seu mise-en-scène, que incluía se levantar da cadeira e dar chutes com seu sapato bicolor.
DOIS VIOLÕES “Ele dizia que, já que íamos fazer um show só com dois violões, tínhamos de botar sangue, ter punch como se fôssemos uma banda. E acontecia. Na última música, o público estava enlouquecido e a gente também. Isso é a força da música acústica, que é a que menos envelhece. A eletrônica passa rápido. O som do piano é o mesmo há séculos e João Gilberto é outra prova disso”, observa. Isso não significava demonstrar virtuosismo no violão, uma vez que Belchior costumava dizer que tocava apenas o suficiente para escrever as próprias canções.
O mineiro conversou com o parceiro pela última vez há cerca de sete anos, pelo telefone (“Estava bem, não reclamou de nada”). Ele acredita que, talvez, o retiro do cearense se deva ao fato de ter concluído que sua contribuição à música brasileira tenha terminado. Ou não: “Talvez tenha cansado de viagem, quisesse ficar mais tempo com a mulher ou um tempo sabático. A gente cobra do artista que ele seja do jeito que a gente quer, que toque sempre, quer saber por onde andou, o que comeu, com quem dormiu. Isso beira a fofoca e incomoda”.
O problema, garante o violonista, não foi falta de inspiração: “Na época, ele me disse ter muita música inédita, mas que não queria fazer nenhum lançamento do tipo”. E aproveita para mandar um recado: “Se ele aparecer aqui, a música ainda está debaixo dos meus dedos. Tenho memória boa e dá para fazer igual a gente fazia”.
Impossível prever se esse reencontro acontecerá, mas o sentimento, para o mineiro, é de que valeu a pena: “Já era fã dele desde os anos 1970. Na virada no milênio, me tornei parceiro de andanças e gravação. Isso é muito legal, é estar perto da história”.
O álbum em questão é 'Um concerto a palo seco', que gravou com o violonista mineiro Gilvan de Oliveira no estúdio Bemol. Inclui 12 faixas de Belchior, como Alucinação, Tudo outra vez, Medo de avião, Divina comédia humana e De primeira grandeza, todas arranjadas por Oliveira. Só voz e violões. Na época, ambos trabalhavam com o produtor cultural Jackson Martins, que os apresentou e assinou a produção executiva do disco, relançado em 2006 apenas com o nome Acústico e com duas faixas extras. “A ideia foi minha. Eu trabalhava com Belchior havia 14 anos e fizemos esse formato com vários instrumentistas. Com o Gilvan deu muito certo”, diz Martins.
“Belchior tinha acabado de gravar o disco Auto-retrato, com arranjos do Ruriá Duprat, e queria apresentar as canções como foram feitas, apenas ao violão. A canção nua, sem orquestra ou banda, preservando para o ouvinte a obra quase no estado puro. Os grandes momentos dos grandes artistas foram assim. João Gilberto fez isso, Baden Powell, Toquinho. Caetano e Gil voltaram a fazer isso também. Procurei ser sofisticado, mas sem interferir. Tem solos e até alguma influência espanhola, como em Galos, noites e quintais”, conta o violonista.
Inicialmente, era para ter sido um álbum apenas de Belchior, acrescenta ele, mas as performances de ambos não deixaram dúvida de que se tratava de um trabalho a ter a capa assinada pelos dois. “A voz dele ficou muito forte, presente. Tudo bem captado, um momento muito feliz. Na semana da gravação, a voz dele não deu nenhum problema. Ele não fazia nenhuma preparação, cantava a palo seco. Brincava que tinha voz de jegue, voz de homem, e não me lembro dele pedir nada de especial antes de gravar”, afirma.
REPERTÓRIO A escolha do repertório foi do próprio Belchior, e as gravações levaram menos de uma semana. Ficaram de fora três músicas: Ismália (poema do mineiro Alphonsus de Guimaraens musicado pelo cearense), Doce mistério da vida (versão de Alberto Ribeiro para a música de Victor Herbert) e Aparências (Márcio Greyck); as duas últimas são o bônus do relançamento de 2006. Nos intervalos, o clima era de camaradagem, revela Oliveira: “Eu, ele e o Dirceu Cheib, um dos donos do estúdio, fumávamos cachimbo e na hora das confabulações ficávamos cada um com sua ‘pipa’”.
A propósito, o violonista amplia o elogio: “Belchior era muito legal, gostava de bons vinhos, de sair à noite. Era quase vegetariano, só comia peixes e frutos do mar. Ele sempre foi muito sociável. Em toda cidade, tinha gente que o conhecia e ele dedicava tempo para conversar. Era impressionante a paciência dele em receber as pessoas após os shows, sem frescura. Recebia todos e não reclamava de assédio nesse sentido. Sempre foi muito tranquilo trabalhar com ele. Um parceiro de viagem, boa prosa, intelectual”.
Oliveira e o cantor viajaram juntos pelo Brasil para tocar durante cinco anos. Nessa época, Belchior andava às voltas com a tradução da Divina comédia, clássico de Dante Alighieri. “Viajava com uma mala de livros que pesava mais do que o nosso equipamento. Lia o tempo todo, todos os assuntos”, lembra. Talvez pelo grande conhecimento de literatura, teoriza, suas canções ainda sejam relevantes: “Músicas como A palo seco não têm idade. Os problemas são atuais e as abordagens, diferentes. Ao falar de política, por exemplo, não é panfletário”.
Belchior não fazia exigências em relação aos locais das apresentações ao lado do violonista. “Era o lugar que o produtor conseguisse, com boas condições de trabalho”, afirma. O mais importante para o artista, diz o mineiro, era magnetizar a plateia. Nas músicas em que o cantor não tocava violão, costumava ficar mais solto como intérprete, livre para pôr em prática seu mise-en-scène, que incluía se levantar da cadeira e dar chutes com seu sapato bicolor.
DOIS VIOLÕES “Ele dizia que, já que íamos fazer um show só com dois violões, tínhamos de botar sangue, ter punch como se fôssemos uma banda. E acontecia. Na última música, o público estava enlouquecido e a gente também. Isso é a força da música acústica, que é a que menos envelhece. A eletrônica passa rápido. O som do piano é o mesmo há séculos e João Gilberto é outra prova disso”, observa. Isso não significava demonstrar virtuosismo no violão, uma vez que Belchior costumava dizer que tocava apenas o suficiente para escrever as próprias canções.
O mineiro conversou com o parceiro pela última vez há cerca de sete anos, pelo telefone (“Estava bem, não reclamou de nada”). Ele acredita que, talvez, o retiro do cearense se deva ao fato de ter concluído que sua contribuição à música brasileira tenha terminado. Ou não: “Talvez tenha cansado de viagem, quisesse ficar mais tempo com a mulher ou um tempo sabático. A gente cobra do artista que ele seja do jeito que a gente quer, que toque sempre, quer saber por onde andou, o que comeu, com quem dormiu. Isso beira a fofoca e incomoda”.
O problema, garante o violonista, não foi falta de inspiração: “Na época, ele me disse ter muita música inédita, mas que não queria fazer nenhum lançamento do tipo”. E aproveita para mandar um recado: “Se ele aparecer aqui, a música ainda está debaixo dos meus dedos. Tenho memória boa e dá para fazer igual a gente fazia”.
Impossível prever se esse reencontro acontecerá, mas o sentimento, para o mineiro, é de que valeu a pena: “Já era fã dele desde os anos 1970. Na virada no milênio, me tornei parceiro de andanças e gravação. Isso é muito legal, é estar perto da história”.