Envolvido pela memorabilia do Templo do Rock, misto de museu e casa onde vive em Saquarema, Serguei lembra o passado, em relatos que unem lisergicamente memória e fantasia: "Em 1968, quando morava em Nova York, ia muito para Greenwich Village. Uma vez, andando por ali, vi uma confusão, carros parados. Passei por aquilo e vi um cara parado. Quem era? O descobridor da América, Cristóvão Colombo! Perguntei: “Como estás? (como está?) Que hacés? (o que anda fazendo?)”. “El mismo que tu, mirando las personas” (o mesmo que você; olhando as pessoas). Logo depois passou um elefante gigantesco no meio da rua. Aquelas noites...”, narra, com a voz rouca e falha, antes de fazer uma expressão de desânimo e concluir: “Hoje o mundo perdeu aquele encanto.”
O mundo desencantado de Serguei, hoje, não é o da psicodelia de Colombos e elefantes pelas ruas de Nova York, é o da rotina de remédios e dificuldades financeiras. Com renda bruta de cerca de R$ 2 mil (composta por sua aposentadoria e uma ajuda da Prefeitura de Saquarema), sem condições físicas de fazer shows, o artista de 82 anos não tem conseguido garantir seu próprio sustento e a manutenção do Templo do Rock.
André Kaveira, seu produtor, cantarola uma das músicas do roqueiro, Tô na lona, para ilustrar sua situação: “Tô na lona/ Sem trocado/ Tô mais duro que cimento armado/ E o meu salário é porcaria/ Não dá nem pra um pirulito por dia/ (...) Devo ao padeiro a metade/ Do que devo ao eletricista/ E o triplo desta soma/ O açougueiro já vem na minha lista/ (...) Tenho uma boa saúde/ Não contando umas bobagenzinhas/ Como salmonela/ E um desviozinho na espinha/ Não como carne há um mês/ De vitaminas tenho escassez”.
PREMONIÇÃO
“Essa música (gravada em 1991) é uma espécie de premonição do que ele vive hoje”, diz Kaveira, vestindo uma camisa com a frase “Serguei/ Eu sou psicodélico”. “Há uns três anos, o Templo do Rock começou a ter problemas sérios de infiltração, o quarto dele ficou coberto de limo, e respirar esses fungos prejudicou seu pulmão. Num esquema de mutirão, nas últimas semanas raspamos a parede, pintamos, resolvemos provisoriamente o problema. Mas a casa precisa de uma grande reforma, o acervo (fotos com Janis Joplin, reportagens nacionais e estrangeiras, pôsteres de lendas como Doors e Ramones, seus LPs e compactos, inclusive recentes reedições europeias) está se deteriorando, tem que ser digitalizado. Ele gasta muito com remédios para os ossos, anemia e o pulmão, além de vitaminas. E entrou num processo psicológico de desacreditar no futuro.”
O artista, que fez seu último show em 2012, na Virada Cultural de São Paulo, hoje quase não sai de casa, limitando-se a cuidar de suas plantas e a receber os visitantes de sua casa/museu, para quem conta animadamente as histórias que envolvem cada peça exposta ali. Dá especial atenção às duas fotos com Janis e ao quarto psicodélico.
O cômodo, iluminado com luz negra, tem quadros de tinta fosforescente de Bob Marley e Jim Morrison (“Janis me apresentou a Jim Morrison e sempre me dizia para nunca pôr a língua para fora perto dele, que ele botava um comprimido na sua boca que te levava para viagens alucinantes”) e almofadas e panos pelo chão. “Era assim que os hippies viviam. Deitavam em lugares assim, dormiam, às vezes se beijavam, ficavam pelados”, diz Serguei, mostrando o ambiente. “Um dia veio um garoto visitar a casa e deitou pelado aí, como os hippies.”
Serguei costuma acordar entre as 10h e as 11h (“Quando tem muito sexo na noite anterior, levanto mais tarde”) e toma seu café da manhã, normalmente pão com manteiga e Coca-Cola. Apesar da alimentação ruim, afirma que se cuida: “Sempre tratei muito bem a máquina. Não fumo, nunca usei drogas nem álcool. Ficava rindo das pessoas que usavam para fugir de um estado de vida infeliz promovido por elas mesmas”.
SAÚDE Kaveira acaba de contratar uma pessoa para garantir que o artista se alimente melhor, tome os remédios, faça algum exercício. Além do cuidado com a saúde do cantor, o produtor quer reerguer sua carreira. Para isso, dirige três filmes sobre o artista: o documentário Ficcicodelia (neologismo que une ficção e psicodelia); o longa O último beatnik, com Eriberto Leão no papel do roqueiro; e a chanchada Serguei: 100 anos de sacanagem (título provisório).
“O documentário está 60% pronto e será exibido em setembro, no Canal Brasil. Queremos também lançá-lo no Festival do Rio. Já entrevistei Alcione, Erasmo Carlos, Maria Juçá, Angela Ro Ro, Rita Lee, pessoas que acompanharam sua carreira. Vai ser o maior projeto de sua vida”, conta Kaveira, que trabalha na captação de verbas para os três projetos, aprovados na Lei Rouanet.
Três filmes é um alvo ambicioso, mas o personagem é rico. Pela história, pelo folclore e por suas falas sobre sexo (“Homossexualidade é um encontro dos deuses, é extremamente forte”), paixão (“Outro dia dei de cara na rua com quem não podia, deu uma vontade de dar um abraço, é triste”), relacionamentos (“Tenho alma de puta, nunca fui muito fiel”) e, é claro, música: “Adoro cantar blues. Bato o pé no chão e lá vou eu, me rasgo. É a vida”, diz, antes de, rouco, cantar Dazed and confused, do Led Zeppelin.(Leonardo Lichote, Agência Globo)