Um dia lhe vieram os verbos, os sujeitos e a poesia. Mais precisamente em 1973, quando Donato gravou Quem é Quem, o disco que considerou seu melhor até ali.
Aos 81 anos, então, Donato trai a própria crença. Saem as palavras, voltam os teclados em uma invertida estética que vai buscar a novidade onde ela parece inesgotável: os anos 70. E eis seu novo álbum: Donato Elétrico. Dez temas inéditos gravados como se estivessem todos respirando o ar do estúdio em que nasceram álbuns geniais como A Bad Donato, de 1970.
O conceito revisionista foi proposto pelo jornalista e produtor Ronaldo Evangelista. "Eu sugeri que fizéssemos um disco focado no novo, mas à moda antiga, sem o piano acústico", diz.
O show redentor do Sesc, com participação de músicos do Bexiga 70, assim como apresentações nos festivais Mimo e Rec-Beat, já eram partes do caminho que levaria a Donato Elétrico. Um processo de depuração e reencontro com a própria história que levaria três anos até chegar ao ponto de se dizer "gravando". Se fosse diferente, com a pressa que não faz parte da vida de João Donato, o resultado seria outro. "Donato é um cara que você não tira do lugar se ele não quiser, que não sai de onde está para te acompanhar." Evangelista cita algo que o fascina: "É impressionante: pegue um disco e leia a contracapa. Se o nome de Donato estiver lá, o álbum será bom. No mínimo, a faixa que ele toca terá algo de genial".
Donato Elétrico, que será lançado dias 11 e 12 de março no Sesc Pompeia, em Saão Paulo, faz soar também uma aproximação natural, não apenas estudada, como se todos os 25 músicos que participam tivessem convergido em seus tempos para se encontrarem em um estúdio de 2015. Do passado mais remoto (os outros estão na casa dos 30 anos de idade), João Donato traz o idioma que começou a criar no acordeom, quando compôs, com oito anos, a valsinha Nini. Um tipo de pensar música sem letra como se fossem todas canções que levaria consigo do Acre, onde nasceu, filho de major da Aeronáutica, para o Rio de Janeiro, onde cresceu, órfão de turma e para os Estados Unidos, onde renasceu, cheio de vida, primeiro ao lado das orquestras latinas de Mongo Santamaria, Eddie Palmieri e Tito Puente e, depois, ao lado de grandes músicos do jazz.
A força do Fender Rhodes (ou apenas Rhodes, desde que a marca Fender tirou o time de campo da parceria, nos anos 70) é tocado por Donato em todos os temas. Suas teclas fazem por si o transporte imediato a algum canto reconfortante da alma criado pela música instrumental desde os anos 50 (apesar de sua popularidade ter aumentado muito nos 70). Donato aponta o norte e inunda de clima old school os sopros grandes e os grooves, as linhas contagiantes dos pés-no-chão-querendo-voar criadas por baixo e bateria. Eles irão jogar para cima o gracioso discurso melódico de Donato, que fala muito em poucas notas. Mesmo como melodista, mesmo nos improvisos, Donato elege o ritmo a razão de sua existência. E assim faz sua música muda falar alto.
Here’s JD, o primeiro tema, é uma espécie de anúncio triunfante do retorno ao futuro do melhor passado. Ainda não é a melhor faixa, mas já está tudo ali, na mão leve do baterista Décio 7, na guitarra funky de Mauricio Fleury e no tema principal do sax de Cuca Ferreira.
O caldo engrossa com Urbano, nos sopros criados pelo integrantes do Bexiga 70 e nos detalhes dos dez músicos que seguem as teclas do Farfisa e do Pro-One de Donato. Frequência de Onda tem os arranjos de cordas de Laércio de Freitas, um diálogo de grandes quando se encontram com o solo do pianista. As formações vão mudando e os arranjadores também, em uma prova de disposição. Combustão Espontânea é a cota obrigatória das latinidades, sobretudo cubanas, nos discos de Donato. Dez faixas e nenhuma palavra que desmontam duas falas do próprio Donato. As teclas dos anos 70 ainda não entraram com o pedido de aposentadoria. E ninguém precisa de letra para querer cantar o que João Donato faz..