Kendrick Lamar, durante pouco mais de sete minutos de apresentação na cerimônia do Grammy, na madrugada desta segunda-feira, 15, foi a faca - facão, espada, ou como você quiser imaginar. Ele abriu um talho em cada um que assistiu a sua performance. Sangrou e, sim, doeu. Lamar escancarou o que o excelente disco To Pimp a Butterfly já dizia, mas alcançou um público muito maior.
To Pimp a Butterfly é o melhor álbum de 2015, não importa o que o Grammy diga. É o que há de mais contemporâneo, relevante, incisivo e perturbador. Hip Hop, rap, não são capazes mais de enjaular as 16 faixas criadas por Lamar. Não, os gêneros de origem negra são dizimados aqui. Jazz, blues, gospel, funk, disco e soul são esparramados, misturados, como uma coisa só. Todos têm a mesma origem, afinal, e dialogam juntos sob a batuta de Lamar e seus produtores.
O disco é um Pollock, expressionista abstrato cujas telas podem ser vistas no MoMa, em Nova York. A desordem criada a partir do instinto. Difícil explicar porque o queixo cai quando se está diante de um Pollock.
E, se não bastasse a revolução sonora, Lamar é visceral em suas rimas. Urra injustiças, escancara diferenças raciais sofridas por ele e outros que sequer fazem sentido existir em 2016. Incompreensíveis e, o mais devastador, extremamente reais. Na América do Norte e do Sul. Em Compton, subúrbio perigoso onde Lamar nasceu e viveu, e no seu bairro, seja Perdizes, Santa Cecília, Pompeia, Tatuapé, Penha, Mooca, Interlagos ou Higienópolis. Cor de pele ainda difere uns dos outros.
Confira a apresentação do rapper no Grammy:
As 11 indicações ao rapper, se é que ele ainda pode ser categorizado desta forma, garantiram ao trabalho o afago que a indústria se dá o direito de conceder. Lamar não é uma Adele, ou uma Taylor Swift, não abre o coração em busca de um novo amor, ou canta sobre um pé na bunda - e, muita calma, entendo que as moças são muito mais do que isso. Seria muito idealista imaginar que ele ganharia do blockbuster que é Swift e seu popzíssimo disco 1989. Não. A indústria, com as 11 indicações e premiações específicas, ligadas ao hip hop, mostra que está atenta ao trabalho dele, mas ainda é incapaz de premiá-lo nas principais categorias.
Não é questão de alguém vencendo outro, embora os estereótipos estejam aí para quem quiser fazer sua análise rasa - o rapaz pobre e negro, canta o racismo, e perde da garota branca, cabelo impecável que pega para si atitude girl power e a transforma em uma máquina de hits. O pop e a indústria de massa ainda não estão preparados para abraçar um álbum cujos versos acusam diretamente com uma parcela da população, revelando uma sociedade quebrada. Não, o pop da massa ainda sobrevive de temas universais, o amor, coisas assim. Mas, esperamos, falta pouco parao pop compreender a obra do rapper.
Lamar fez o disco que o mundo todo precisava ouvir. Nem todos notaram To Pimp a Butterfly quando foi lançado, contudo. No fim de 2015, as listas de melhores discos do ano o colocou no topo e mais alguns dedicaram tempo para ouvi-lo. A performance no Grammy escancarou sua mensagem aos olhos e ouvidos daqueles que ainda o evitavam, involuntariamente ou não. Lamar é a faca, Lamar abre a ferida, com dor, para tirar do corpo aquilo que faz mal, um câncer, o racismo.