Conheça a história de quatro pessoas que vivem intensamente o carnaval de BH

Folia da cidade reúne tradição e inovação, gente de diversas procedências e com as mais variadas propostas

por Fernanda Machado 03/02/2016 07:30
Um carnaval de muitos rostos. Esse é o espírito da folia que tem tomado conta das ruas de Belo Horizonte. E se a festa hoje é protagonista na capital, estimulando o surgimento de blocos como o Garotas Solteiras, liderado pela jovem regente Daniela Ponce de Leon, e o Swing Safado, bloco que o músico Jefferson Gomes criou como presente para o Conjunto Santa Maria, ela nunca realmente acabou. Prova disso são os mais de 30 anos de criações carnavalescas da costureira Arabela Gonçalves, da Acadêmicos de Venda Nova, e a dedicação do músico Ângelo Lima à frente do bloco caricato Os Inocentes de Santa Tereza. Saiba como a história dessas quatro pessoas se cruzou com o carnaval. Quatro personagens diferentes, mas que se encontram no retrato da diversidade que é a folia em BH.


Euler Junior/EM/D.A Press
Arabela Gonçalves e a irmã Adelia Rubini, fundadoras e costureiras da Acadêmicos de Venda Nova (foto: Euler Junior/EM/D.A Press )
“Desfilo chorando”

 

"Não sou muito boa com as palavras, sou melhor com as mãos", fala ao telefone uma animada mas ainda tímida senhora de 66 anos. Arabela Gonçalves faz, de fato, mágica com as mãos. É de sua habilidade com a máquina de costura que saem algumas das mais brilhantes e criativas fantasias do carnaval de Belo Horizonte. Mas depois de um dedo de prosa já se percebe que a simpatia da costureira se iguala facilmente ao talento com os adereços e tecidos.

Designer e principal costureira da escola de samba belo-horizontina Acadêmicos de Venda Nova, Arabela começou a respirar carnaval apenas aos 30 anos. "Quando eu tinha uns 15 anos vi um desfile na Afonso Pena e lembro de ficar maravilhada. Mas nunca tinha participado, ido a bailes. Até os 30 anos eu não sabia nada sobre a festa", conta. O convite que a jogou dentro do furacão da folia veio do filho Marco Aurélio Gonçalves - hoje carnavalesco da escola - quando o rapaz ainda tinha 15 anos. Ele convidou a mãe par ajudar na confecção de fantasias da extinta GRES Mocidade Independente de Venda Nova.

Deste convite em diante, Arabela nunca mais abandonou o carnaval. Quando a escola de seu bairro acabou, ela passou a fazer fantasias de luxo que concorriam em concursos de clubes como o Sírio Libanês e da Belotur. Depois, passou a fazer alegorias para agremiações de cidades como Sabará, Nova Lima e Timóteo. "Eu brinco assim: BH pode ter tido uma época sem carnaval , mas na minha casa ele nunca acabou", diz com o riso solto.

No fim de 2004, criou junto aos filhos Marco, Ricardo, Francisco e Janaína, além da sua irmã Adélia, vizinhos e amigos, o GRES Acadêmicos de Venda Nova. Apenas quarenta dias depois do começo da confecção das fantasias, a escola desfilava na avenida e já abocanhava o segundo lugar do carnaval 2005. "Foi lindo. Lembro da nossa bateria com plástico bolha na cabeça, das nossas baianas feitas com tecido TNT. Chego até a arrepiar", conta emocionada.

Desde então, Arabela segue na sina de dar vida às ideias do filho, e de criar carnavais cada vez mais brilhantes. "No começo era mais difícil, hoje já consigo executar 90% do que ele desenha no papel", garante. A costureira se responsabiliza pessoalmente pela fabricação das fantasias de destaque da agremiação, como comissão de frente, passistas, mestre sala e porta bandeira, além da sua própria vestimenta e de sua família.

"Quando olho para trás e vejo a escola todinha na avenida, aquela harmonia de cores, as penas trepidando, balançando, eu choro. Desfilo chorando", diz. Quando o carnaval acaba, até passa pela sua cabeça parar, depois de tanto trabalho, mas a ideia logo se dissipa em meio a sugestões de enredo para o próximo ano. E o recado para os mais novos, que já seguem dando sangue pela escola, ela sabe na ponta da língua: "Se eu me for no carnaval nem pensem em cancelar a festa. Façam do desfile uma homenagem na avenida".

MARCOS VIEIRA/EM/D.A PRESS
Jeffersom Gomes comanda o bloco Swing Safado, e foi convidado para ser puxador da Cidade Jardim (foto: MARCOS VIEIRA/EM/D.A PRESS)
“Hora de confraternizar”

 

Desde criança Jeffersom Gomes já está acostumado com as caixas e tamborins. Criado no Conjunto Santa Maria, nas proximidades do Bairro Cidade Jardim, região Centro-Sul da cidade, o músico de 28 anos coleciona memórias auditivas de ensaios da bateria da escola de samba de sua vizinhança. "O carnaval aqui sempre existiu. Eu costumava ouvir a movimentação de casa. Nos anos de 1995, 1996, a escola ainda estava no auge. Depois o carnaval depenou. As agremiações continuaram, mas ficaram bem menores".

Mesmo com o samba batucando em seu quintal, por muito tempo Jeffersom foi da turma que não ligava muito para a folia. Envolvido com os movimentos sociais de Belo Horizonte, responsáveis pela faísca que deu início ao renascimento do carnaval de rua da cidade, ele acabou se envolvendo com a festa. "Tenho a lembrança de ver três pessoas vestidas de baiana tocando pela cidade. Era surreal. Hoje eles são um bloco que coloca 100 mil pessoas na rua. Tive a oportunidade de estar perto, de ver de perto", conta.

E estar perto desse "novo" carnaval fez com que o cantor se voltasse para seu próprio bairro novamente. "Me deu vontade de movimentar um bloco para o Santa Maria. Que unisse as pessoas daqui em uma festa de rua", explica. Surgia aí a ideia do Swing Safado. "Depois dos ensaios da escola de samba ficávamos ali, cantando músicas populares, especialmente as de duplo sentido. Quando propus o bloco, a galera comprou na hora", comemora.

Abraçado pelo Santa Maria, o Swing Safado é um bloco que "concentra mas não sai", e se apresenta antes e depois do carnaval. "A vantagem da comunidade, de periferia, é que a gente tem um contato muito direto com as pessoas, são as mesmas famílias que moram ali há anos", explica. No primeiro ano do bloco, em 2014, o músico foi de casa em casa contando a ideia e pedindo licença para colocar sua bateria na rua. A primeira pessoa visitada foi uma senhora de mais idade, que teria que concordar que o sistema de som fosse colocado na porta de sua casa. "Ela respondeu feliz: 'Que venha! Que venha todo ano!".

Além da responsabilidade de gerir o bloco que criou, Jeffersom foi convidado, neste ano, para ser um dos puxadores do enredo da Escola de Samba Cidade Jardim. "Está sendo uma coisa de outro mundo", diz emocionado.

Por fim, hoje a folia entrou de vez na vida do músico. "Para mim o carnaval é a melhor hora de confraternizar com toda a história musical do meu bairro. Dos MCs novos, aos sambistas antigos, de MC Delano a Domingos do Cavaco. É a época de contar todas essas histórias".

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Ângelo Lima preside o Inocentes de Santa Tereza, o mais antigo bloco em atividade da capital (foto: MARCOS VIEIRA/EM/D.A PRESS)
“Veio para somar”
Assumir a presidência do bloco caricato mais antigo a desfilar em Belo Horizonte não é para qualquer um. E essa estrada foi percorrida com seriedade pelo músico Ângelo Lima. "Se você me chamar de Ângelo provavelmente não vão saber de quem você está falando. Aqui todos me conhecem como Pantyola", adianta o simpático instrumentista.

Hoje à frente do Inocentes do Santa Tereza, bloco que carrega a tradição de mais de 40 anos de folia, Pantyola começou a desfilar quando tinha apenas 11 anos. "Fui crescendo dentro do bloco. Aprendi a fazer as alegorias, comecei a tocar na bateria. De componente passei para a direção. E lá se vão 12 anos", conta.
 
Com um carnaval que é construído durante o ano todo, com oficinas ministradas em comunidades carentes, o Inocentes é um dos projetos de vida de Ângelo. Tanto que o bloco hoje é mais composto por crianças do que por adultos. "Eles mandam mais aqui do que os marmanjos", brinca.

Mais do que a folia em si, o carnaval para Pantyola é coisa séria. Primeiro pelo seu bloco representar uma manifestação cultural que foi idealizada em Belo Horizonte. "O bloco caricato é o único movimento de carnaval que só existe em BH. É uma cultura que os mineiros criaram", garante. E pra quem ficou curioso para saber qual a diferença para os blocos de rua, ele explica resumidamente: "Saímos com o rosto pintado, e desfilamos em um caminhão, assim como os operários que construíram a cidade costumavam fazer".

O segundo motivo pelo qual o músico leva seu trabalho tão à sério é a paixão. "Quero passar aquele sentimento que vivi quando eu era menino", afirma.  Feliz com o aprimoramento da festa na capital ele conta que, mesmo com o carnaval esquecido pela maioria dos belo-horizontinos, o Inocentes de Santa Tereza nunca deixou de desfilar. "Há alguns anos chamávamos as pessoas para assistir ao desfile e eles questionavam: 'tem carnaval em BH?'. Ficávamos tão tristes. Hoje, ainda bem, essa ideia mudou. E o carnaval daqui veio somar para a cultura do nosso país", comemora.

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De apito na boca, a novata Daniela Ponce de Leon assume a regência do bloco Garotas Solteiras (foto: MARCOS VIEIRA/EM/D.A PRESS)
“Uma forma tão intensa"

Quem vê uma animada garota apitando, fazendo gestos, e pulando incansavelmente para manter o ritmo da bateria do recém-criado bloco de rua Garotas Solteiras pode não imaginar que a história dela com o carnaval começou há apenas um ano. Mas é isso mesmo. A regente Daniela Ponce de Leon, de 24 anos, estudante de Arquitetura, resolveu mergulhar na folia em 2015. Comprou um tamborim e foi ao ensaio do bloco Juventude Bronzeada.

Depois de viver a festa intensamente, e participar de pelo menos sete blocos, o tamborim começou a ser substituído timidamente pelo apito, a convite de amigos já veteranos no carnaval. "Foi tudo muito rápido. Apesar de ter noção de ritmo, não sentia a liberdade de ajudar. Só depois que conheci regentes que me incentivaram que comecei a tentar", afirma.

A tarefa, dividida no Garotas Solteiras com o amigo e também regente Jhonatan Melo, ainda não flui com total naturalidade. "É um pouco difícil. Como nunca estudei música, passo muito tempo escutando o repertório do bloco", revela. "Sempre tenho um pezinho atrás, um medo de me dar um branco, mas está rolando. Eu sei que se eu errar, no momento da euforia, da festa, pouca gente vai perceber", se diverte.

Assumir o papel de regente de um bloco ainda é tarefa mais desempenhada pelos homens, apesar de o carnaval de BH ter representantes do quilate das percussionistas Chaya Vazquez (Bloco da Praia) e Nara Torres (Chama o Síndico). "Ainda é complicado, como mulher, se sentir capaz de fazer certas coisas, de puxar um apito e comandar uma bateria. Eu mesma só consegui porque fui convidada", diz. " Mas está sendo muito importante para mim, porque várias mulheres já chegaram falando que queriam participar mais depois que me viram lá na frente", se orgulha.

E se 2015 foi ano de descoberta, 2016 será um ano de estímulo para Daniela. "Acredito que o carnaval desse ano terá esse caráter inspirador para o surgimento de novos blocos", comenta. E para quem ainda tem dúvidas sobre entrar ou não na festa, a regente é categórica. "Eu não tinha ideia de que qualquer pessoa, sabendo ou não tocar, poderia participar do carnaval de uma forma tão intensa. Basta querer!"

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