"Era uma banda que não era a minha, numa praça bonita. Mas Dona Onete, ninguém conhecia.” É na terceira pessoa que a cantora e compositora paraense se lembra de sua estreia em Belo Horizonte, em 27 de maio de 2012, na Praça do Papa. Até chegar àquele palco, Ionete da Silveira Gama viveu muitas vidas.
Foi professora de história do ensino fundamental, também secretária de Cultura de Igarapé-Miri, a chamada “capital mundial do açaí”. Criou os filhos Renato e Silvana, e viu os cinco netos, que lhe dariam três bisnetos, crescerem. Tudo regado a muito jambu, uma erva típica da região Norte, que lhe rendeu a expertise em licores e doces.
De volta à praça naquela cidade estranha para aquele público que nunca a vira, Dona Onete usou a cabeça. “Comecei a cantar ‘Como pode o peixe vivo/Viver fora da água fria’. Continuei cantando, e eles (a plateia) comigo. Ganhei a simpatia e hoje estou dizendo: ‘O povo de BH é massa’.”
Desde aquele 2012, ela abraça e é abraçada pelo público daqui. Fez outros dois shows, e vai fazer o quarto nesta terça-feira, na primeira edição de 2016 do projeto Mesa Brasil Musical, realizado pelo Sesc/Palladium. No palco do Grande Teatro, é ela quem vai comandar o show, que terá como convidados Fafá de Belém e Otto.
Efetivamente, a carreira de Dona Onete tem pouco mais de uma década. É apenas uma parte da vida desta senhora de 76 anos, de voz rouca e malícia a toda prova, que virou a diva do chamado carimbó chamegado. Carimbó é um ritmo típico do Pará, que, em sua forma tradicional, é acompanhado por tambores e tem uma dança própria. O “chamegado” é uma derivação criada por ela, pois vem das letras sempre provocadoras, para dizer o mínimo.
Ela é uma espécie de matriarca da música paraense, aquela que, a exemplo do mangue beat nos anos 1990, tomou, 20 anos mais tarde, o caminho do Sudeste. Gaby Amarantos é a ponta mais visível dessa produção que ganhou o país, com prestígio na imprensa especializada e boa presença na mídia.
Tecnobrega, guitarrada, zouk, calipso e carimbó são os estilos que abarcam artistas como Felipe Cordeiro, Lia Sophia, Mestre Vieira, Luê Soares. Dona Onete tem a favor de si carisma e uma produção extensa. Acredita já ter composto pelo menos 600 músicas. “Dizem que tenho uma voz belíssima, mas me acho mais compositora. Isso porque quando entrego uma música para a minha banda, ela já vem todinha. Eles têm que arrumar pouca coisa, pois já faço do jeito que querem.”
Jamburana Dona Onete tem um CD lançado, Feitiço caboclo (2012), que fez pelo menos um hit, Jamburana. “Se você quiser saber o que a jamburana faz/O tremor do jambu é gostoso demais.” É também a canção que ela nunca deixa de cantar, por mais que a saúde a impeça de voos muito ousados.
Costuma se apresentar numa cadeira, resultado de uma artrose no quadril. “Além da artrose, fiz uma cirurgia. Foi uma confusão, mas dá para mexer. É com alegria que eu comando da cadeira. Não tem aquelas pessoas que jogam vôlei em cadeira de rodas? Então, consigo até fazer uma jogada de saia (algo obrigatório quando se dança o carimbó). Dizem que eu estava ficando saliente, mas tenho certeza de que estou bem. Só que é muito remédio para isto, para aquilo. Costumo dizer para os outros que da cintura para cima continuo Dona Onete.”
A produção, por sinal, não para. Já tem sete músicas prontas das 12 que deverão compor seu segundo álbum, que será lançado neste ano. O título do álbum, Banzeiro, foi tirado de uma das canções. Depois desse trabalho, ainda emplaca um documentário, que será realizado no Mercado Municipal Ver-o-Peso, em Belém. A ideia é contar a sua história, que se mistura com a da cultura nortista, por meio da música.
No show de hoje, Dona Onete pretende cantar algumas inéditas. Como a produção é enorme, ela não se avexa. Pode incluir até uma de suas canções mais antigas, que recentemente tirou do baú. Leva o nome de Sonhos de adolescente a música que ela compôs há pelo menos 35 anos. “Eu era jovem, nem pensava em ser compositora. Acho que vai chamar a atenção de outro público.”
E qual público seria? “Meu amor, já nem sei. Comecei cantando para pessoas mais maduras, sabe, de uns 40, 50 anos. Agora é muita juventude. Mas tem também as idosas. Outro dia, num show, tinha uma senhora de 92 anos dançando carimbó.”
Fazendo com que o carimbó vá além das fronteiras, Dona Onete se permite até mesmo algumas licenças poéticas. Em BH, leva para o palco não só o treme-treme do jambu, como também a religiosidade da ora-pro-nóbis. “Já chego cantando ‘se comer ora-pro-nóbis, tem que dizer amém’. A cada vez que vou aí, eu canto e vocês fazem a coreografia. É um dengo só”, conclui.
MESA BRASIL MUSICAL
Dona Onete convida Fafá de Belém e Otto. Show hoje, às 21h, no Sesc Palladium, Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro. (31) 3270-8100. Ingressos esgotados
TRIO AFINADO
Ainda que Dona Onete tenha participado de alguns shows com Otto e Fafá de Belém, o encontro do trio, no Sesc/Palladium, é inédito. Com Otto ela já sabe: vai cantar Jamburana e Proposta indecente. Com Fafá, ainda não. “Lá a gente conversa, todo o pessoal de Belém se entende”, comenta. Fafá de Belém, que comemora em 2016 os 40 anos do lançamento de seu álbum de estreia, Tamba tajá, vem atuando, sempre que pode, com a leva de artistas de seu estado. Esteve ainda na primeira edição do Terruá Pará, um show em 2006 que reuniu, em São Paulo, vários artistas paraenses, numa iniciativa do governo do Pará (o projeto teve outro show, em 2011, e resultou em CD e DVD). Seu álbum mais recente, Do tamanho certo para o meu sorriso (2015), foi produzido por Felipe e Manoel Cordeiro. Uma das 10 canções do repertório é Pedra sem valor, de Dona Onete. “Ela é uma potência, uma doce força da natureza. A música de Dona Onete é absolutamente intuitiva e espontânea”, afirma Fafá.