Conceber um samba-enredo e fazê-lo chegar à avenida no carnaval é tarefa longa, árdua e dispendiosa, sobretudo nas escolas do Rio de Janeiro. A maior parte dos foliões nem imagina o que se passa nos bastidores. “O samba é uma engrenagem muito forte dentro dessa máquina chamada carnaval. Praticamente tudo gira em torno dele”, afirma Jefinho Rodrigues, um dos autores do samba-enredo deste ano da Mocidade Independente de Padre Miguel.
“Na parceria deste ano, conto com gente como Marquinho Índio, que está comigo há anos.
“Isso sai geralmente em abril, maio, e aí temos uns dois meses para criar. Tem que estudar muito, contar a história de cabo a rabo. Quem melhor traduzir musicalmente e de uma maneira alegre, emotiva e objetiva o que a sinopse pede ganha”, diz o cantor e compositor Marcelo Guimarães, um dos autores do samba-enredo da Beija-Flor em 2016, Mineirinho genial! Nova Lima – Cidade natal. Marquês de Sapucaí – O poeta imortal!, que narra a trajetória do jurista e político mineiro Cândido José de Araújo Viana, o Marquês de Sapucaí, que batiza a avenida do samba no Rio.
Além de Guimarães, que puxa o samba ao lado de Neguinho da Beija-Flor nos desfiles, a música tem cinco autores. Uma extensa lista de compositores é característica comum a quase todas as escolas de samba. No caso da agremiação de Nilópolis, atual dona do título do carnaval do Rio de Janeiro, o máximo permitido são seis autores.
“Alguns parceiros que aparecem como autores são pessoas que ajudam financeiramente. A criação mesmo é feita por dois ou três, que geralmente são os nomes que aparecem primeiro. Mas o samba envolve tanta coisa, que todos têm a sua relevância”, afirma Guimarães.
No caso da Mocidade, o samba-enredo deste ano conta com nove “compositores”. Assim que a sinopse do enredo é apresentada, os autores fazem o samba, em dois ou três encontros regados a cerveja e churrasco. A providência seguinte é gravar. “Isso já demanda dinheiro, porque a gente vai para estúdio, tem que ter músicos, algumas pessoas fazem até clipe e, se tiver algum artista de renome envolvido, como tivemos em 2014, no enredo Pernambucópolis, o Lenine, gasta-se até mais”, explica Jefinho.
Nos fins de semana até setembro/outubro, há eliminatórias para se escolher o samba vencedor.
“Antes de cada eliminatória na quadra da escola, a gente ensaia durante a semana com a galera o samba para que no dia todo mundo esteja com a música na ponta da língua. Geralmente fazemos churrasco, distribuímos camisa. Imagina isso todo fim de semana. Demanda grana mesmo. É uma prática comum a todas as escolas”, acrescenta o compositor.
Para se ter um samba-enredo vencedor, um grupo de autores pode gastar de R$ 60 mil a R$ 110 mil. Caso vença, o samba pode render até R$ 500 mil com sua difusão – em disco e na TV, durante os desfiles.
TERREIRO DE BAMBAS
O rol dos criadores de sambas-enredos inclui grandes nomes da nossa música. Arlindo Cruz é um deles. Nascido em Madureira, na Zona Norte do Rio, era natural que se apaixonasse pelo Império Serrano. Foi lá que, em 1989, ele fez seu primeiro samba-enredo, Jorge Amado, axé Brasil.
Cruz diz que a cada folia a disputa fica mais acirrada e cara e afirma não ser muito favorável a essa “armação de torcida”. “Acho que essa coisa de ensaiar as pessoas para cantar na hora das eliminatórias pode atrapalhar um pouco.
Ele é um dos autores do samba deste ano do Império, que luta há 9 anos para voltar ao Grupo Especial do carnaval carioca. A composição homenageia um dos representantes mais queridos e saudosos da escola, o músico Silas de Oliveira, cujo centenário de nascimento ocorre em outubro. “A gente tentou fazer um samba que o Silas poderia ter assinado. Tem a cara dele. Conto com grandes nomes nessa parceria, como o Aloísio Machado, o Arlindo Neto, que é meu filho. Sou democrático, mas quero a melhor melodia, a melhor letra, o melhor jeito de cantar sempre”, diz.
CHATEADO Dudu Nobre entrou na disputa por um samba-enredo pela primeira vez aos 16 anos, na Mocidade, sua escola do coração. “Só tinha eu na composição. Era uma época em que dava para se fazer sozinho ainda”, lembra. Ficou entre os semifinalistas. No ano seguinte, tentou novamente, mas o cenário já era outro. “Os gastos com as disputas estavam crescendo demais, e eu não consegui me manter financeiramente depois desse samba. Fiquei bem chateado, acabei me afastando durante um tempo e fui correr atrás da minha carreira de músico”, conta.
O retorno ao universo dos sambas-enredos veio em 2014, quando fez o da Mocidade e o da Viradouro. Desde então, passou a se dedicar não só às escolas do Rio, mas às de São Paulo, Espírito Santo e até do Pará. “Há muita diferença de uma escola para outra e de um estado para outro. Faço pesquisa de como é a levada da agremiação. Tem que saber em que ritmo anda a bateria, se é mais acelerada, mais cadenciada”, diz.
Neste ano, Dudu ganhou o samba da Unidos da Tijuca, que trata do agronegócio e da cidade de Sorriso, no Mato Grosso (Semeando sorriso, a Tijuca festeja o solo sagrado). “A equipe de autores é praticamente um time. Cada um tem uma função – compor, organizar as festas, chamar a torcida, contratar os músicos. Se esse time não jogar direito e unido, fica difícil ganhar, porque são muitos concorrentes. Neste ano, por exemplo, desbancamos 21”, resume.
PARA LEVANTAR A AFONSO PENA
Em Belo Horizonte, a competição é menos acirrada, e a folia movimenta bem menos dinheiro do que no Rio e em São Paulo. Nem por isso os sambas-enredos daqui deixam de ter qualidade. Um dos que prometem levantar a Afonso Pena em fevereiro é o da Cidade Jardim, sobre o Clube da Esquina.
O samba reúne sete assinaturas, e cada autor teve uma missão, além da principal – criar letra e melodia. Os músicos Fabinho do Terreiro, Vander Lee, Gabriel Guedes, Domingos do Cavaco e os colaboradores Jane Medeiros, Kerison Lopes e Pedrão contam a história do movimento musical mineiro com um refrão que diz “Bituca é raça, Piano na praça/Cantando Maria, Maria fumaça”.
Fabinho do Terreiro, articulador dessa turma, afirma que os enredos costumam ser complexos, por isso é necessária a participação de várias pessoas. “É um trabalho que demanda tempo, pesquisa. Tem que fazer as letras, a melodia, depois ensinar o samba para a comunidade, ou seja, tem que dividir as tarefas mesmo. É impossível uma pessoa só fazer um samba-enredo.”