Aos 24 anos, Tamara é nome promissor no cenário do hip-hop mineiro, que tem sido dominado por mulheres talentosas como Zaika dos Santos, Bárbara Sweet e Clara Lima. O contato de Tamara com a música se deu aos 8 anos, em uma igreja de sua comunidade. A congregação, liderada por uma mulher, desenvolve trabalhos voltados à periferia. E foi de uma pregação sobre a importância dos anônimos heróis na história que veio o nome da faixa-título do CD – projeto que está longe de ser rotulado como gospel.
Muito ligada às questões raciais, Tamara fez logo conexão com as mulheres que realizaram algo significativo e não tiveram seu nome registrado na história dita “oficial”, como Aqualtune, rainha do Congo que liderou um exército na África e já no Brasil – como escrava – foi avó de Zumbi dos Palmares. “O meu som representa tantos outros anônimos que não têm espaço e voz para falar”, conta a rapper.
Anônima abre o disco e já surpreende de cara pelo som de pífanos. A base do sample foi feita da canção Baião destemperado, do CD Corpo do som (2002), do grupo paulista instrumental Barbatuques. O flow é certeiro e o beat convida à dança.
As letras são pura crítica social e abordam temas como a beleza da mulher negra, ostentação e preconceito racial. “O CD fala do que eu vi, penso e vejo dentro do meu contexto e da minha época, numa linha do tempo que eu sei que existe”, explica Tamara.
Do baião ao reggae. Hey Jah conta com a participação de Gordão, do Uai Sound System, Look e Simimi Ni Moyo, rapper de Luanda (Angola). Já a pop A alma nos une conta com a participação dos moçambicanos Adriana Chyale e Pisco Mazuze, além de Black W, do Morro das Pedras. Tamara conta que tem o hábito de procurar pelo trabalho de artistas independentes africanos. “Começamos a nos falar e criamos essa conexão”, conta ela.
Uma parceria especial e, provavelmente, a faixa mais tocante do disco é Mãe preta. A toada de 1954 é dos famosos sambistas gaúchos Piratini e Caco Velho. “Era assim que mãe preta fazia/ criava todo o branco com muita alegria/ Porém, lá na senzala o seu pretinho apanhava/ Mãe preta mais uma lágrima enxugava.” Tamara divide os versos com seu pai, Marcos Franklin, que cantarolava para ela e suas irmãs a canção.
“É a música que mais mexe comigo, tem uma mensagem muito forte. Ela me altera. No pré-lançamento do CD, meu pai subiu ao palco comigo. Desestabilizou-me. Me segurei para não chorar. E ele tem aquela coisa de passar calma, sabedoria”, conta Tamara.
Maravilhosamente simples traz sample de Saudosa maloca, composição de 1955 de Adoniran Barbosa. Tipicamente brasileiro, que fecha o disco, também começa com samba e é outra faixa forte do projeto. “Essa fugiu completamente do meu processo de composição. Ouço um beat e sempre escrevo em cima de um instrumental. Essa eu acordei com o refrão. ‘Quer me chatear fala do meu cabelo/Quer me chatear fala dos meus parceiros’. Meu amigo Look me desafiou a fazer um rap todo ritmado. Aceitei e deu certo”, diz a rapper. O refrão, como ela própria assume, é daqueles que grudam e passam o dia todo na cabeça.
Para Tamara, nada é regra no hip-hop: “Tem gente que não gosta desse diálogo do rap com outros estilos, outros propõem até passos mais ousados.
NA PELE “Mais uma preta marrenta, vinda das ruas barrentas.” Das letras de Anônima vem a urgência de discutir a luta da mulher negra. Tamara sofreu tudo na pele. “A gente é feia, fedorenta, do cabelo ‘assim’. Cresci vendo as mulheres brancas como os grandes ícones de beleza e ouvindo que eu era macaca”, conta.
A cantora lembra que a mulher negra é permanentemente hostilizada pela sociedade, que não a vê como boa o bastante para um relacionamento ou cargo, mas promove a hipersexualização do seu corpo. “Além disso, a maioria é mãe solteira que tem que segurar a onda em casa com tudo. Ela que enterra seu filho. A maioria dos jovens mortos são negros. É ela que vai ser maltratada em clínicas quando for ganhar o bebê. O maior índice de feminicídio e violência doméstica está entre nós”, acrescenta Tamara.
Assim, a rapper vê a importância de pregar o empoderamento da mulher negra com sua música. E o projeto tem surtido efeito. Já se tornou comum meninas, com orgulho de seus blacks power, enviarem a ela vídeos cantando Tipicamente brasileiro. “A melhor arma que a gente tem contra esse preconceito é se reconhecer como capaz e bonita. Sou negra e isso não me faz menor do que ninguém”, destaca.
Em suas apresentações, Tamara canta A mulher do fim do mundo, incluindo o refrão de Cilada, da rapper mineira Sarah Guedes. “Eu não sou mulher para você mesmo não/Moleque não merece tanto assim na mão/ Deus foi generoso até mesmo para Adão/Pra uma costela eu lombro seu caminhão.” “A Elza e a Sarah são artistas que acho fantásticas. Não ignorando a caminhada de cada uma delas, são duas mulheres fortes. Queria homenageá-las”, explica Tamara.
Sarah Guedes é só uma das rappers com as quais ela tem “fechado” atualmente. Zaika dos Santos, Lana Black, Polly Honorato, Page, Brisa Flow e Bárbara Sweet passaram a ser referência para a cantora. “Cheguei dentro do rap cercada por homens. Por muito tempo, absorvi o discurso machista. Engoli sem saber que era. Deixei naturalizar dentro de mim – fora eu já sei que é”, relata.
Ela lembra que a segunda edição da Semana Hip-Hop Alto Vera Cruz, realizada em novembro e comandada por mulheres, foi boicotada por muitos homens do rap de BH. “Acho que a cena das mulheres aqui tende a crescer. Estamos nos organizando para isso. Vi algo bonito entre nós: a picuinha foi deixada de lado para dar apoio umas às outras. Se 2015 foi o ano das mulheres, 2016 vem ainda mais pesado”, avisa.
Onde adquirir o CD
À venda, por R$ 10, na loja Estilo de Rua no Shopping Uai (Rua Saturnino de Brito, 17, Centro), ou on-line na página oficial do Facebook. No dia 16, Tamara participará de uma intervenção social na Rua 7, Bairro Landi, em Ribeirão das Neves. O evento é gratuito..