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Entrevista com Ellen Oléria: "Sou mulher, negra, lésbica e da periferia"

Cantora relembra 2015, antecipa projetos por vir e não mede palavras para falar sobre nosso panorama social, político e cultural

Diego Ponce de Leon

- Foto: Diego Bresani/Estudio Califórnia

Em fevereiro próximo, ela estreia como apresentadora de tevê. Em março, invade rádios e o mercado com o novo disco. Em abril, deve subir aos palcos de brasilienses como atriz, algo que ela não encara desde 2008. O ano por vir promete para Ellen Oléria. E não foi lá muito diferente de 2015, embora ela tenha passado boa parte do tempo em terras estrangeiras. Participou de uma residência artística na Inglaterra, cantou no Japão e na Rússia, mas fecha o ano da maneira que prefere: cantando e militando.


No último dia 10, Ellen encarou uma multidão no Parque Madureira, Rio de Janeiro, e soltou a voz em um evento feito em homenagem a cinco jovens mortos naquela região. Debates e provocações sobre a violência social — assim como sobre o racismo e a questão de gênero — tornaram-se marcas da cantora, que passa a ser conhecida não somente por conta do forte timbre, mas igualmente pelo discurso de combate à intolerância.

 

Nesta entrevista, ela fala sobre a condição de “mulher negra, lésbica e da periferia” e as consequências desses atributos em seu cotidiano pessoal e profissional.

Aproveita para se declarar à esposa, Poliana Martins; antecipar, em primeira mão, as novidades próximas; e questionar a passividade do brasiliense diante do fechamento de espaços culturais: “Precisamos reagir. Cada um de nós!”.

 

Você participou de um show no Parque Madureira, em dezembro, em homenagem a cinco jovens assassinados no Rio de Janeiro...

Madureira foi lindo. Uma corrente do bem. Um movimento fundamental que chama a atenção para esse genocídio que se instalou no Brasil. De acordo com números da Anistia Internacional, nosso país mata mais do que regiões que estão em guerra neste momento. Fora que 70% desses assassinatos são de jovens negros. No fim do espetáculo, eu não segurei a onda. Como diz meu irmão mais velho, “eu chorei largada”. Só com a energia da sonoridade e da fraternidade podemos pensar em reverter esse quadro.

 

Cada vez mais você tem se tornado uma referência na luta contra homofobia, racismo... Eu acho que não deveríamos ter que eleger vozes...

Todos os grandes nomes das religiões, os intelectuais, os líderes, falam de uma passagem pela vida com sensibilidade. Falam de um conceito revolucionário: o amor.

E é dele que quero tratar no meu trabalho, ter no meu cotidiano. Que seja o fundamento da minha carreira. Isso deveria ser um projeto de todas as pessoas.

 

Falando em trabalho, pode nos contar um pouco do novo disco, Afrofuturista, a ser lançado em março?

Estou muito feliz com o resultado. Há quatro anos estudo afrofuturismo e penso em como trazer todo esse universo à tona. Sou herança, descendência e promessa dessa linhagem. No disco, passeamos pelos ritmos tradicionais, afrobrasileiros. O álbum fala de raízes, de como as populações afrodiaspóricas têm sobrevivido aos projetos de extinção e massacre com tanta luminosidade, inventividade e criatividade. Passa pelo candomblé, pelas modas de viola, pelo maracatu. Um trabalho coletivo, como prefiro fazer.

Enquanto eu puder cantar e contar nossas histórias, farei isso.

 

Você acha que falar da própria sexualidade ou da sua cor de pele podem ter, de alguma forma, prejudicado sua carreira? A experiência do racismo, por exemplo, está em todas as esferas da sociedade. Em algumas, de forma mais escancarada, em outras de maneira mais velada. Mas eu encaro a porrada. É um processo natural, afinal diz respeito a quem, de fato, sou. O escândalo está no outro. Eu sinto muito para quem diz que a gente está fora. A gente está dentro!

 

Você consegue ignorar essa resistência social?

Eu ligo o “f...-se”! Mas esse “f...-se” precisa ser bem consciente. Eu quero dizer para todo mundo que meu amor por essa mulher (a esposa Poliana) me transforma. Eu quero dizer que ser afrobrasileira, ser negra, me faz uma mulher feliz. Os elefantes tem algo lindo: quando um deles fica mais velho, por exemplo, os outros cuidam. Há um senso de coletividade muito especial entre eles. E podemos fazer o mesmo. Vamos receber aquele que está cego, aquele que se perdeu pelo caminho. Vamos juntos!

 

Você se lembra quando percebeu, pela primeira vez, que sua trajetória seria de luta, de resistência, de combate a um padrão vigente?

Eu era bem pequena, ainda criança, e me lembro de já experimentar uma violência, um preconceito, na escola, nas ruas. E achei que deveria deixar de ser negra. Perguntei para minha mãe: “Se eu tomar muito leite, será que fico branca?”. E ela me retrucou questionando o porquê daquela vontade. Eu disse: “Quero ser modelo. Gente assim, como a gente, não pode ser modelo. Não tem modelo assim”. Ela falou: “Não existe? Então, você vai ser a primeira!”. O empoderamento veio desde cedo, desde esse primeiro abraço da minha mãe.

 

Embora sua carreira te leve mais para Rio e São Paulo, você não deixa de acompanhar a cena de Brasília. Como reage a essa balbúrdia atual sobre a lei do silêncio, o fechamento de espaços culturais...?

Há tempos, a coisa não está bacana. Eu passei dois anos tendo que pagar para tocar em Brasília. A comunidade precisa reagir. A cidade não está conseguindo absorver a própria produção cultural. Muitos acabam buscando outros eixos. O que é uma pena, pois deixamos de aproveitar muita gente boa. Poderia passar uma tarde listando os talentos da música brasilense. Outra tarde falando do povo do teatro, e por aí vai. Onde estão essas pessoas? As coisas estão morrendo, mas não é de morte natural não.

 

Um cenário pouco otimista...

Brasília tem uma questão: foi feita para diluir tensões. O rico não precisa ver a cara do pobre. Não quer conviver com a conversa alta no restaurante, nem com música ao vivo. Tudo sob controle. A cidade deveria crescer de forma mais orgânica. Os poderosos querem tomar conta, impor um código de conduta e acham que podem fazê-lo por conta da alta renda per capita. Mas temos que reagir. Estamos de luto pela cultura do DF. A população precisa acordar. Parar um pouco com essa história de que “a culpa é da Administração de Taguatinga, do Governo, da Secretaria de Cultura...”. O nosso interesse coletivo precisa estar acima de interesses individuais. “Na minha rua mora um desembargador, então não tem bar nenhum”. O que é isso? Os terreiros incendiados? O que dizer sobre isso? As cidades do DF precisam de força para produzir e para escoar. Sair do Plano. Ocupar.

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