Com o punho cerrado, em um gesto sempre simbólico, o gigante do soul entrou no palco e se apresentou para uma plateia vibrante e essencialmente negra durante sua passagem por Belo Horizonte, há 10 dias. Tony foi convidado especial do show da banda Black Rio, grupo carioca nascido nos anos 1970 e referência no cenário musical do país, que integrou a programação do Festival de Arte Negra de 2015. Ovacionado, soltou: “Apenas a título de curiosidade, para quem não sabe: Tony Tornado nasceu em 26 de maio de 1931. Oitenta e quatro anos nas costas, 84 anos de luta”.
O público aplaudiu e, sob os holofotes, o militante da cultura negra mostrou que ainda estão lá o suingue, o vozeirão e o discurso político forte. “Sou negro sim/ Sou negro sim/ Sou negro sim/ Mas ninguém vai rir de mim”, gritou o cantor, no Grande Teatro do Sesc Palladium.
Ao longo de cinco décadas de trajetória artística, Tony, batizado Antônio Viana Gomes, conquistou o respeito e a admiração do país, reservando seu lugar entre os grandes. Mas não foi fácil. Ser negro no Brasil ainda não é. Hoje, de certa forma, ele se sente satisfeito e aliviado em ver que tudo o que passou no período da ditadura militar – nove passagens pela polícia, discos apreendidos e exílio – não foi em vão. Deu frutos. “Só lamento que não estão Candeia, Grande Otelo... Negros que também lutaram pela nossa emancipação”, considera.
E é essa oportunidade que ele procura para o filho Linconln, de 29, companhia em apresentações Brasil afora. Tony é só elogios para a cria, que herdou do pai o tamanho e o gingado. É para ele que Tornado passará o bastão. “É muito difícil para um pai quando quer lançar o filho na jogada e não tem elementos para isso. Dei a maior sorte. O cara é talentoso, bonito, canta bem, dança bem: entende do riscado. Por isso estou arriscando todas as minhas fichas”, explica.
NA TV Contratado da TV Globo há 39 anos, ao longo da carreira Tony assumiu papéis secundários em novelas, programas humorísticos e infantis, como o personagem Avalanche em Caça talentos (1996), telenovela protagonizada por Angélica. Suas grandes chances de interpretação foram dadas na década de 1980, como o empregado Rodésio da viúva Porcina em Roque Santeiro (1985) e dando vida a um capitão do mato em Sinhá Moça (1986). O ator ainda atuou como o Tenente Gregório na minissérie Agosto (1993), produzida pela emissora, e no filme Pixote (1980), do diretor Hector Babenco.
“Oportunidades davam. Mas é muito pouco. É uma emissora eminentemente branca. Eu sei. Eu entendo. É muito difícil… Não sei até onde a Globo também é culpada, porque nenhuma novela vai ao ar sem uma pesquisa de mercado. Então, é o público que dita, né?”, tenta explicar. Assim, para Tony, não há razão para brigar com os galãs loirinhos dos olhos azuis. “Mas tem uns negros bonitos por aí. Que bom que agora estão prestando mais atenção nisso”, ressalva, entre risos.
“Homem de cor” É verdade que, desde a fuga de casa, aos 11 anos, Tony não fez outra coisa senão aproveitar cada oportunidade que a vida lhe ofereceu. Foi engraxate, paraquedista no Exército, cover de rockeiros e até cafetão no Harlem, nos Estados Unidos. Mas a real mudança veio em 1970, quando participou do Festival Internacional da Canção e saiu vencedor, ao lado do Trio Ternura, com a canção BR-3, de autoria dos compositores Tibério Gaspar e Antônio Adolfo.
“É o hino. É um marco. É a estrada da vida. ‘A gente corre e a gente morre na BR-3’”, repete a letra. Tony reafirma que a música tratava apenas do perigo da rodovia, atualmente BR-040, que liga Minas Gerais ao Rio de Janeiro. Uma história circulou na época e acabou virando lenda: ‘BR-3’ seria a terceira veia, e ‘Jesus Cristo feito em aço’ a agulha, referindo-se à aplicação de heroína. “Coisa dos militares. Estavam desesperados”, explica.
No ano seguinte, no mesmo festival, o entusiasmo acabou traindo-o. Durante a defesa de Black is beautiful por Elis Regina (1945-1982), ele subiu no palco e fez o sinal black power, do grupo revolucionário americano Panteras Negras. Mal abaixou as mãos e já estava algemado. E assim, saiu preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do Maracanãzinho, a despeito dos gritos da cantora. “Quando ela disse que ‘eu quero um homem de cor’, eu falei: ‘sou eu. Só pode ser eu’. Empolguei-me”, lembra.
Tony diz que o gesto não foi algo premeditado: “Deu vontade na hora”. Ele diz ter encarnado os ativistas negros Stokely Carmichael ou James Baldwin. “Vou levantar o punho como haviam levantado os atletas nas Olimpíadas”, lembra. O cantor havia chegado dos Estados Unidos e ainda carregava consigo resquícios do movimento pelos direitos civis raciais que marcaram a década de 1960. “As pessoas acharam estranho: por que ele não sambou e tal?”, relembra, irônico.
Para ele, de qualquer forma, a ação foi significativa. “Marcou. As pessoas começaram a tomar consciência de que tinha um significado cerrar o punho”, conta. A maior preocupação de Tony era não deixar que todo esse esforço se perdesse na história. “Isso tem sido importante para o restante da minha carreira. As pessoas me respeitam. Sem falsa modéstia, sou referência. Sou um negro que deu certo”, ressalta.
Apesar de se descrever figurativamente como um artista realizado, Tony diz que precisava de mais uns 50 anos para se tornar um grande cantor e ator. “Para nós, artistas, o melhor ainda não fizemos. Ainda está por vir. Tenho isso como filosofia de trabalho”, avisa.
De Sebastião, como se refere a Tim Maia (1942-1998), Tony se recorda com saudade. Em homenagem ao amigo que conheceu durante sua temporada em Nova York (EUA), ele canta O dia da festa do santos reis em suas apresentações. A canção, composta por Marcio Leonardo, ficou famosa na voz de Tim.
Tony descreve o cantor como parceiro um pouco ‘avoado’, mas importante no movimento musical. “Sebastião tinha muita coisa boa. O resto é tudo folclórico”, diz. Entre os ensinamentos de Tim, estão o medo de biografia. “O Sebastião falou que, quando se faz a biografia, a gente morre”, explica Tony. Assim, de forma sutil, o gigante do soul encerra a entrevista, com medo de que o papo se estenda e vire livro. E que história seria!
Depoimentos
Mizael Santos, fundador da Rádio Favela
“Muita coisa aprendi com o Tony Tornado. Porque na ditadura o cara participou de festival e a gente não conseguia ter as informações daquela época. Então, me inspirei muito nele para poder fazer o que faço hoje. Vim beber da fonte.”
Wilson Queiroga
Músico
“O Tony Tornado marcou minha infância. Lembro-me dele no festival, assisti a ele defendendo aquela música (BR3). Era um momento difícil, o Brasil estava atravessando uma fase pouco democrática. O que tinha de válvula de escape era mesmo a música, a arte. Era ele, Jorge Ben Jor, Trio Esperança... Poucos negros na música e ele era um desses ícones.”
Lord Tuca
dançarino de soul
“O show me fez relembrar os velhos tempos. O Tony Tornado, junto com o Gerson King Combo, do Rio de Janeiro, estava na época da black music com Big Boy e Ademir Lemos, já falecido. Foi um prazer fazer parte desse momento maravilhoso.”
Felipe Soares
ator fundador da Cia. Negra de Teatro
“Tony Tornado tem uma representatividade muito grande para os artistas negros, porque antes de Lázaro, antes de vários outros artistas, ele já estava na TV. Antes disso, ele já tinha uma carreira muito bacana com a música. Vê-lo, com 84 anos, velhinho, com essa força toda e esse discurso forte, que ainda nos levanta, é bonito demais.”