Ela não mentiu quando disse ao Estado de Minas que faria um show “basicamente rock’n’roll”, com "alguma estranheza de que gosto muito". Gal Costa apresentou a Belo Horizonte nesta sexta-feira, 27, uma visita a boa parte de seus principais momentos sobre o palco nos 50 anos de carreira — mas sempre com olhar fixo no futuro.
- Foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press Segue-se o blues de Jards Macalé em Mal secreto, apenas a primeira referência do espetáculo ao disco Fa-Tal (1971), principal registro ao vivo da cantora. Com vocais equiparáveis à gravação de quatro décadas atrás, o gênero dolorido que deu origem ao rock serve para confirmar a ideia que Gal tem sobre o show. O painel assinado por Zé Carratu se ilumina a partir de Jabitacá, revelando o florido alegre do vestido Gucci de Gal e afastando — momentaneamente — a escuridão do repertório com uma das canções de amor do novo trabalho.
- Foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press 50 anos bem cantados
A quem assistiu ao introspectivo show do álbum Recanto (2011) no mesmo Sesc Palladium, a abertura do concerto de Estratosférica já cumpriu promessa de estranhamento. Sem medo nem esperança, primeira faixa do disco lançado em maio, também dá início à jornada da baiana sobre o palco. Com vocais rasgados, Gal se contém nos gestos e faz pose de roqueira, marcando o tempo da canção com um dos pés. Já na largada, a estrela faz questão de deixar brilhar a guitarra de Guilherme Monteiro, que anuncia os arranjos pesados sob direção musical de Pupillo, do Nação Zumbi.
Gal conta piadas
A possível melancolia, aliás, foi suspensa por um incidente que arrancou gargalhadas do público. Ao início de Ecstasy, o guitarrista enfrentou um problema técnico idêntico ao que ocorreu no show anterior, em São Paulo. Com a música interrompida, Gal Costa improvisou o truque de contar piadas enquanto o instrumento era consertado. "Sou péssima para contar piadas, acho que Guilherme faz de propósito", brincou, antes de divertir a plateia com uma anedota sobre a figura do matuto mineiro.
A guitarra de Monteiro voltou a falhar em Casca, levando Gal à reflexão irônica: "Coisa chata esse negócio eletrônico, né? E eu resolvi fazer um show de rock". Longe da figura sisuda que fazia o canto doer no retorno aos palcos há quatro anos, a Gal de agora quer se divertir sob os holofotes. "Tenho me jogado no mundo, sem medo nem esperança. Esse show é para celebrar", definiu.
Se é para comemorar, nada mais justo que reverenciar o meio século de carreira com clássicos da fase sessentista, sempre embalados em arranjos contemporâneos. Namorinho de portão, e Não identificado, ambas do primeiro álbum solo de 1969, eram acompanhadas calorosamente, verso a verso, pelos fãs. Gal tem um quarteto de rock no palco e ganha muito por deixá-los livres para criar sobre suas gravações clássicas — a banda consegue envolver as letras conhecidíssimas em sons tão psicodélicos quanto as versões originais, com o mérito de não imitá-las. Neste trecho, Estratosférica soa como um show tropicalista nascido nos anos 2000.
De volta ao universo do ao vivo Fa-Tal, Como 2 e 2 e Pérola negra ganham releituras que fazem jus ao icônico disco ao vivo, também chamado de A todo vapor.
As brincadeiras eletrônicas de Pupillo ainda fazem crescer algumas faixas de Gal dos anos 1980 que não são exatamente primores nas gravações originais. Cabelo (1983), vira um rock de guitarra e baixo bem marcados, com o apoio dos fãs no refrão deliciosamente datado. Já Arara (1984), faixa desimportante de um disco mediano, ganha releitura meio funk, meio soul que supera a concepção original de Lulu Santos.
Memórias de Maria da Graça
O breve tributo a Caetano Veloso, amigo e mentor da cantora, é um dos momentos mais emocionantes do show. Sozinha no palco, com um violão no colo, Gal Costa relembra o primeiro encontro com o gênio baiano, a quem foi apresentada ainda na adolescência. "Apenas para lembrar o dia em que conheci Caetano, quando éramos teenagers. Eu ainda sou uma teenager, dentro de mim", ela diz.
A faixa escolhida para homenagear a amizade de décadas é Sim, foi você, composição de Caetano no compacto de estreia da cantora que, em 1965, ainda assinava o nome de batismo Maria da Graça. Na gravação da iniciante, a canção era acompanhada por Eu vim da Bahia, obra de um certo Gilberto Gil, à época com 23 anos.
O público se encanta ao vê-la retomar o instrumento, depois de décadas, assim como ela tocou um violão ao cantar para Caetano pela primeira vez. "Ele me perguntou 'para você, quem é o melhor cantor do Brasil?' e eu respondi: 'João Gilberto'", recorda. "Ele disse: 'Também acho. Agora me dá o violão que vou tocar uma música minha'", Gal se lembra, divertida.
"Não largo mais dele"
O violão também protagoniza um momento de devoção da artista ao companheiro de palco, Guilherme Monteiro. As mãos hábeis do instrumentista respondem pelo show intimista Espelho d'água, que fez a transição, no ano passado, entre a escuridão autoral de Caetano em Recanto e a ensolarada pluralidade dos jovens autores de Estratosférica.
O músico entrou para a equipe de Gal em 2012, ao substituir Pedro Baby nas guitarras da turnê de Recanto. O primeiro encontro se deu em uma passagem de som, quando Monteiro tocou uma harmonia perfeita, "daquelas que qualquer cantora goza e deita de alegria", relembra Gal. Desde então, a admiração recíproca rende momentos poéticos como Pelo fio, faixa inédita de Marcelo Camelo executada pela dupla a voz e violão.
A sessão acústica ainda se desdobra em Três da madrugada, de Torquato Neto, cantada por Gal em 1973 no disco de tributo póstumo ao artista piauiense. Adoçada pelo talento de Guilherme, a canção reafirma a potência vocal da intérprete aos 71 anos.
Novas e sólidas
Se Estratosférica não fosse um álbum acima da média, se perderia entre tantas joias do repertório que se propõe contemplar 50 anos de obra. Contudo, acontece o contrário: as novas canções se integram à vasta coleção de clássicos da voz de Gal Costa e confirmam a qualidade do disco. Desde a faixa-título, que abre uma sequência de versões suingadas, até a malícia de Por baixo, que revive o Tom Zé de versos despudorados, todas as inéditas parecem completar uma linha contínua de Gal como intérprete presenteada por autores.
Quando você olha pra ela, que abriu a divulgação do novo álbum, foi recebida pelo público tão calorosamente quanto as gravações mais clássicas da setlist. É possível imaginar que a letra de Mallu Magalhães — ou ainda as rimas de Criolo sobre melodia de Milton Nascimento em Dez anjos — tenham levado Gal para ainda mais perto das novas gerações de ouvintes, uma tarefa de redescobrimento que teve início com os flertes eletrônicos do trabalho de 2011.
Tesouros escondidos
Gal também não blefava quando prometeu "tesouros escondidos" no show de Estratosférica, e as surpresas passam longe dos clássicos previsíveis. Desta vez, nada de Falsa baiana ou London, london: quem representa o disco Legal (1970) é Acauã, lamento sertanejo do pernambucano Zé Dantas que se transforma em psicodelia eletrônica. Sozinha no palco, a cantora controla uma espécie de pedaleira adaptada para as mãos, criando distorções digitais que ecoam sombrias pelo palco escuro.
Mas o concerto, como proclamado, é "basicamente rock". Daí a relevância da visita que Gal faz a Rita Lee em Cartão postal, dos tempos da banda Tutti Frutti no clássico disco Fruto proibido (1975). Ao reviver composição da maior roqueira do Brasil, a veterana da MPB saúda a versatilidade do estilo e comprova seu apreço por interpretar algo para além dos hits.
Outro aceno à originalidade do produto nacional ocorre com Os alquimistas estão chegando os alquimistas, de Jorge Ben em A tábua da esmeralda (1974). A faixa é reservada para o ápice do espetáculo, alcançando a nobreza que lhe é devida bem próxima do fim do repertório.
Doeu no coração
"Meu nome é Gal, tenho 70 anos", ela canta agora. Antes da canção que eternizou seu nome, a artista prestou homenagem às vítimas do rompimento de barragem da Samarco em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, que ela considera "das coisas mais horríveis que já aconteceram no planeta".
"Doeu no meu coração", confessou Gal ao público belo-horizontino. Lamentou as 13 mortes confirmadas e as milhares de vidas afetadas pela tragédia, enfatizando que o incidente é algo terrível "acima de qualquer coisa para a natureza, que é sagrada". A plateia reagiu com gritos de "Vale assassina", em referência à companhia que é principal controladora da Samarco.
A letra da canção de 1969 foi arredondada para incluir as inspirações contemporâneas de Gal Costa, selando de vez seu pacto com o novo. "Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, Tom Zé, Antonio Cicero, Milton Nascimento, João Donato, Rogério Sganzerla, Waly, Jorge Benjor, Rogério Duprat. Mas também admiro Moreno, Zeca, Kassin, Mallu, Camelo, Thalma, Alberto, Arthur, Criolo, Jonas, Lira, Júnior, Céu, Pupillo, Guilherme, Fábio, Maurício, Tomas, Marcus Preto e um pessoal da pesada."