Rico Dalasam: ''No Brasil, ser negro tem peso muito maior do que ser gay''

Rapper que se apresenta em BH nesta quinta-feira diz que preconceito ainda está longe de ser vencido: ''Metade do meu show é sonho, a outra metade é vivência''

Bossuet Alvim 26/11/2015 06:00

 

Rico Dalasam é homossexual sim senhor, mas não é esse o ponto principal de sua carreira. "Sou o primeiro negro gay a existir dentro do cenário do rap e vir para o jogo, trabalhar como qualquer outro deles trabalha", explica o paulistano. Colhendo frutos do EP Modo diverso ao longo do último ano, o artista quer se desvencilhar do rótulo superficial de "primeiro rapper gay do país", justamente por ter muito mais a tratar em suas rimas. "Não quero causar polêmica (por ser gay), apesar de a imprensa sempre fazer como se fosse."

A questão, para ele, vai muito além da orientação sexual. "A gente sabe que, no Brasil, ser negro tem um peso muito maior do que ser gay", enfatiza o rapper, destacando que "as pessoas estão muito mais armadas" contra negros por causa do racismo estrutural no país. "Às vezes o racismo é tão implícito e subjetivo que as pessoas nem percebem. Elas me acham interessante por eu ser gay e cantar rap, mas se eu fosse só mais um negro hétero fazendo esse tipo de música, nem me notariam", afirma.

Henrique Grandi/ Divulgação
Paulistano trabalha para vencer o racismo subjetivo: ''Me acham interessante por eu ser gay e cantar rap, mas se eu fosse só mais um negro hétero fazendo esse tipo de música, nem me notariam'' (foto: Henrique Grandi/ Divulgação)
Com o primeiro álbum a caminho, Rico diz ter calculado a reação do público à sua homossexualidade antes mesmo de lançar o EP de estreia, no ano passado. "A gente sempre soube que, até o segundo ou terceiro ano, teríamos o trabalho de educar as pessoas diante da novidade que proponho, ao invés de simplesmente entregar entretenimento", conta.

 

Os obstáculos são gerados, ele acredita, por correntes de pensamento retrógrado que derivam do contexto histórico brasileiro. "A gente vive uma onda de retrocesso que cria no inconsciente das pessoas a ideia de que ser um rapper gay é muito pra frente, muito vanguarda. Ainda vivemos uma pós-ditadura, vai levar tempo até isso se tornar uma questão sepultada."

Dalasam crê que, caso tivéssemos vivido uma abertura democrática mais precoce, o cenário seria diferente no meio artístico. "O rap já seria outra coisa, estaria de outro tamanho. Aqui no Brasil, rap é só uma coisa: protesto. Nos Estados Unidos, onde ele já existe há mais tempo, pode ser sobre comida, carro, gangue, festa. Lá já existia o rapper gay", ele aponta.

A resistência da própria cena musical com a postura assumida do artista chegou a ser um entrave. "Minha existência no mundo do rap não é fácil, apesar de eu estar conquistando o respeito de muitos caras importantes. Mas, no fim das contas, isso é estrutural do país, todo mundo é homofóbico. Não ficou legal ser gay de ontem para hoje e ser um gay negro é ainda menos tranquilo", observa.

 

 

Na luta contra o racismo, o músico faz da expressão artística sua principal ferramenta. "Contornar um problema social com a arte é um trunfo", comemora. Cita Mano Brown como primeira referência "para qualquer um que vem do rap", mas também procura conhecer trajetórias de personalidades estrangeiras, especialmente dos EUA, onde percebe um modelo concreto de superação do racismo no show business. "O último cara sobre quem li e achei incrível foi o Nile Rodgers. Mesmo com o racismo do mundo todo ele conseguiu produzir alguns dos maiores hits de Madonna, Duran Duran, David Bowie", comenta.

 

Rico procura domar os sentimentos negativos para garantir que sua mensagem chegue mais concreta ao público. "Hoje é muito fácil se tornar ícone de alguma militância por causa da internet, mas a vida não é só isso. O virtual é legal por ser representativo, mas no dia a dia você precisa ter criatividade para convencer as pessoas. Vai precisar ter um bom sorriso, educação, brilho no olhar. Aí não adianta manifestar o ódio", afirma.

 

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Rico diz que se emociona ao ouvir histórias como as de fãs que se assumiram gays para a família por causa de sua música: ''Eu choro junto'' (foto: Henrique Grandi/ Divulgação)
Resultado emocionante

Em um ano de atividade intensa, a consequência do trabalho tem chegado no corpo a corpo, antes e depois dos shows. "Tem gente que contou para a mãe que é gay por causa da minha música. Tem pessoas que chegam com uma história tão forte que não aguentam falar. Elas vêm, pedem um abraço e começam a chorar. Eu choro junto, porque também estou no processo de tornar legítimo tudo que eu sou diante do mundo", ele desabafa.

Na prática, o rapper dá seu recado com versos, mas também pela postura. Rico transmite a seus jovens fãs a certeza de poder ser quem se é, tanto por seu visual desligado de estereótipos, às vezes andrógino, quanto pela segurança com que transita entre diversos gêneros musicais sem se importar com as predisposições de estilo. "A aceitação faz parte do quanto o entretenimento que proponho é interessante. Mas não significa que o cenário homofóbico e racista mudou", lamenta Dalasam.

Assim, a mensagem de autoafirmação e segurança é, em parte, uma projeção do artista, que ainda não enxerga o preconceito como uma barreira vencida. O trabalho, portanto, é feito também de esperança. "Às pessoas que me assistem e têm atenção de me analisar, estou contando uma história que ainda não se tornou real por completo. Metade do meu show é sonho, a outra metade é vivência."

Fã de BH
Com fãs espalhados pelo país graças à distribuição gratuita de seu primeiro EP, Rico Dalasam já se apresentou em todas as regiões e se orgulha de encontrar o público com as rimas na ponta da língua. "Estive recentemente no Nordeste e todos me conheciam da internet", comemora. A receptividade é diferente da que ele encontra na cidade natal. "Todos os lugares que visitei foram muito diferentes da primeira vez em São Paulo, que é um público muito mais duro, braço cruzado, cara feia. São Paulo sempre te desafia a convencê-la, nunca se apresenta com aprovação", afirma.

Mas foi justamente no ambiente árido da capital paulista que Jefferson Ricardo da Silva tornou-se o Dalasam. "Me vi MC na Batalha do Santa Cruz, mesma cena de onde vieram nomes como Rashid e Emicida. Aquele rolê deu para a gente a visão de que éramos MCs de qualidade", ele recorda. A origem no confronto de rimas fez com que o rapper se sentisse em casa desde a primeira visita à capital mineira, há um ano, em participação na abertura do show de 25 anos dos Racionais MCs. "Todo mundo do rap considera BH um lugar certo, onde a música funciona muito", observa.

 

Antes de conhecer a cidade, Rico já sabia da importância do Duelo de MCs, que elevou Belo Horizonte a um dos principais pontos no roteiro do rap nacional. "O Duelo é uma das faixas de MCs mais respeitada do país. Em vários estados acontecem batalhas, em São Paulo tem batalha todo dia, mas o Duelo de MCs é a coisa mais organizada que existe no meio, funciona de um jeito diferente de qualquer outro estado. Tem tamanho e estrutura, passa muito respeito", elogia.

Não por acaso, ele diz ter vivido a melhor de suas experiências com a capital mineira sob o Viaduto Santa Tereza. "Toquei no Baixo na sexta e soube que domingo tinha Duelo, então pedi à organização para cantar umas três músicas. A galera sabia as letras e acabei fazendo mais duas", conta ele sobre o pocket show espontâneo que ocorreu em junho. Rico Dalasam faz sua quinta visita aos belo-horizontinos hoje, com show no Parque Municipal, pela programação do Festival de Arte Negra. O músico ainda participa, na mesma noite, de apresentação da cantora paraense Gaby Amarantos.

Rico Dalasam

Show do rapper no Festival de Arte Negra (FAN). Nesta quinta-feira, às 20h00 no Parque Municipal (Av. Afonso Pena, 1377 - Centro). Entrada franca.

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