É chegada a hora. Agora, não resta muito o que dizer, só ouvir. Depois de algumas datas na América do Sul, Caetano Veloso e Gilberto Gil, de volta ao Brasil, começam hoje, no Chevrolet Hall, a segunda parte da turnê nacional de Dois amigos, um século de música. Tanto a apresentação deste sábado, às 22h, quanto a de amanhã, às 20h, estão esgotadas.
Desde a estreia, em 25 de junho, em Amsterdã, o repertório sofreu pequenas modificações. Em linhas gerais, os dois estão sozinhos com o banquinho e o violão, a exemplo do mestre João Gilberto. A apresentação aproxima-se das duas horas. O número de canções pode chegar a 30.
O primeiro show no Brasil foi em 20 de agosto, em São Paulo. De lá para cá o público conheceu uma parceria inédita: o samba As camélias do Quilombo do Leblon, que traça um paralelo entre o Brasil escravocrata – o quilombo na Zona Sul carioca protegido pela princesa Isabel, que recebia em troca camélias, tornadas símbolo da abolição – e a vida na Palestina, que Gil e Caetano visitaram em julho.
Apostando na voz (principalmente na de Caetano), no violão (no virtuosismo de Gil) e nos silêncios, o brilho fica na música. Que pode ser tanto dos primórdios da carreira (É de manhã, a mais antiga do repertório, gravada por Bethânia em 1965), quanto de fases mais recentes, como Não tenho medo da morte, que Gil gravou na década passada.
A seguir, um pouco da história de algumas canções. São narrativas que fazem parte da vida de Caetano e Gil, mas também da de todos nós.
Tropicalistas
Duas canções apresentadas no 3º Festival da Música Popular Brasileira, em outubro de 1967, são os marcos iniciais do Tropicalismo. Uma delas é Domingo no parque, de Gil, defendida com uma banda de rock, no caso os Mutantes. Na histórica (e polêmica) edição do festival, ela levou o segundo lugar. Naquele mesmo ano, Caetano havia lançado seu primeiro álbum solo, aberto pela canção (Tropicália) que deu nome ao movimento que eclodiria em 1968. Tropicália ou Panis et circenses é ainda o antológico disco-manifesto que uniria a geração. Na capa, realizada em São Paulo, na casa do fotógrafo Oliver Perroy, sob influência de Andy Warhol, Sgt. Peppers e toda a contracultura, o poeta Torquato Neto aparece de boina, ao lado de Gal. São dele algumas das letras mais relevantes do movimento, entre elas Marginália II, parceria com Gil, que o baiano gravaria em seu álbum de 1968.
Do exílio
O AI-5, promulgado no início de dezembro de 1968, é o início do fim do tropicalismo. No dia 27, Gil e Caetano são presos em São Paulo. Liberados apenas na quarta-feira de cinzas do ano seguinte, não demoram a seguir para o exílio. Em Londres, Caetano grava dois álbuns, Transa (1972, lançado quando ele volta ao Brasil) o mais importante deles. Nine out of ten, uma das canções em inglês do álbum, marca a experiência que o baiano tem com os imigrantes jamaicanos. Na canção, de forma pioneira, ele incorpora o reggae. O período na prisão vai inspirar uma de suas canções mais celebradas: lançada em 1978 no álbum Muito (Dentro da estrela azulada), Terra não foi bem recebida na época. Tocou pouco em rádio, era muito longa (quase sete minutos) para os padrões.
Com destinatário
No início de 1980, Gil se separa de sua terceira mulher, Sandra Gadelha. É um ano de poucos shows e muita produção. Uma das canções mais marcantes do período, Drão (lançada no disco Um banda um, 1982), é escrita logo após o fim do relacionamento. Versa sobre as transformações do amor. “Drão” é o apelido dado a Sandra por Bethânia. Já Caetano e Gil a chamavam “Drinha”. Caetano é prolífico em homenagear amigos e amores em canções. Vera gata foi escrita para Vera Zimmerman; Tigresa para Regina Casé; Branquinha e Não me arrependo para Paula Lavigne. Nos anos 1970, conheceu o baixista Dadi Carvalho. Então integrante dos Novos Baianos (mais tarde ele formaria A Cor do Som), Dadi ganha de Caetano O leãozinho (do álbum Bicho, 1977). Quando recebeu o presente, o músico acreditou que não fosse para ele, mas para Moreno Veloso, “porque parece um pouco música para criança”.
Transcendentais
De formação católica, Gil já admitiu que com a passagem do tempo foi se tornando “um indivíduo mais autônomo”. Afirmou ainda que seu deus é “vago, um mistério”. Esotérico (do álbum Doces Bárbaros, 1976), é sua tentativa de transpor a ideia do mistério divino para o campo do amor terreno. Andar com fé (de Um banda um, 1982) é uma homenagem ao linguajar caipira, aquele que “come” as sílabas finais (“Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá”). Da safra mais recente, a verborrágica Não tenho medo da morte (registrada em Banda larga cordel, 2008) foi escrita numa viagem a Sevilha. Em sua reflexão, ele discorre sobre o real medo: não é o da morte, e sim o de morrer. É, de longe, o momento mais confessional do show, quando Gil a interpreta só com a voz e o batucar do violão.
O que é que a Bahia tem
Cantando a própria aldeia desde o início da carreira, Gil e Caetano celebraram a Bahia de diversas formas. Eu vim da Bahia, canção dos primórdios da carreira de Gil, foi registrada por muitos intérpretes – Baden Powell e Gal Costa entre eles. Mas virou uma música de João Gilberto. Em seu álbum mais recente, Gilbertos samba (2014), uma ode à batida joão-gilbertiana traz novo registro. Ídolo maior de Caetano, João Gilberto ganha homenagem no show com uma versão de É luxo só (Ary Barroso/Luiz Peixoto), outra canção de que o baiano de Juazeiro se apoderou. A Bahia é apresentada ainda de uma maneira saudosa. Back in Bahia é da safra londrina e integra o repertório de Expresso 2222 (1972), primeiro álbum de Gil pós-exílio. Enquanto a letra ressalta a falta da terra natal, a melodia valoriza ritmos nordestinos.
No retorno do exílio, os baianos encontram mudanças. Gil se impressionou com a redução do afoxé Filhos de Gandhi, um dos blocos carnavalescos mais importantes e populares de Salvador. “Ao revê-lo numa situação de indigência, me deu uma dor seguida de um arroubo de filialidade; resolvi dar uma força”, disse ele, que se inscreveu no bloco e compôs Filhos de Gandhi (do álbum O viramundo, 1976). Ainda desfilou durante 13 anos consecutivos no bloco. A folia, claro, não fica de fora. Clássico do repertório inaugural do axé, Nossa gente (Avisa lá), de Roque Cordeiro, foi lançada em 1992 pelo Olodum. No ano seguinte, em Tropicália 2, Gil e Caetano fazem novo registro da canção, com menos percussão e mais corda. A luz de Tieta, da trilha do filme Tieta do agreste (1996), de Cacá Diegues, é Caetano para as massas. Foi um dos sucessos do carnaval soteropolitano de 1997.
Desde a estreia, em 25 de junho, em Amsterdã, o repertório sofreu pequenas modificações. Em linhas gerais, os dois estão sozinhos com o banquinho e o violão, a exemplo do mestre João Gilberto. A apresentação aproxima-se das duas horas. O número de canções pode chegar a 30.
O primeiro show no Brasil foi em 20 de agosto, em São Paulo. De lá para cá o público conheceu uma parceria inédita: o samba As camélias do Quilombo do Leblon, que traça um paralelo entre o Brasil escravocrata – o quilombo na Zona Sul carioca protegido pela princesa Isabel, que recebia em troca camélias, tornadas símbolo da abolição – e a vida na Palestina, que Gil e Caetano visitaram em julho.
Apostando na voz (principalmente na de Caetano), no violão (no virtuosismo de Gil) e nos silêncios, o brilho fica na música. Que pode ser tanto dos primórdios da carreira (É de manhã, a mais antiga do repertório, gravada por Bethânia em 1965), quanto de fases mais recentes, como Não tenho medo da morte, que Gil gravou na década passada.
A seguir, um pouco da história de algumas canções. São narrativas que fazem parte da vida de Caetano e Gil, mas também da de todos nós.
Tropicalistas
Duas canções apresentadas no 3º Festival da Música Popular Brasileira, em outubro de 1967, são os marcos iniciais do Tropicalismo. Uma delas é Domingo no parque, de Gil, defendida com uma banda de rock, no caso os Mutantes. Na histórica (e polêmica) edição do festival, ela levou o segundo lugar. Naquele mesmo ano, Caetano havia lançado seu primeiro álbum solo, aberto pela canção (Tropicália) que deu nome ao movimento que eclodiria em 1968. Tropicália ou Panis et circenses é ainda o antológico disco-manifesto que uniria a geração. Na capa, realizada em São Paulo, na casa do fotógrafo Oliver Perroy, sob influência de Andy Warhol, Sgt. Peppers e toda a contracultura, o poeta Torquato Neto aparece de boina, ao lado de Gal. São dele algumas das letras mais relevantes do movimento, entre elas Marginália II, parceria com Gil, que o baiano gravaria em seu álbum de 1968.
Do exílio
O AI-5, promulgado no início de dezembro de 1968, é o início do fim do tropicalismo. No dia 27, Gil e Caetano são presos em São Paulo. Liberados apenas na quarta-feira de cinzas do ano seguinte, não demoram a seguir para o exílio. Em Londres, Caetano grava dois álbuns, Transa (1972, lançado quando ele volta ao Brasil) o mais importante deles. Nine out of ten, uma das canções em inglês do álbum, marca a experiência que o baiano tem com os imigrantes jamaicanos. Na canção, de forma pioneira, ele incorpora o reggae. O período na prisão vai inspirar uma de suas canções mais celebradas: lançada em 1978 no álbum Muito (Dentro da estrela azulada), Terra não foi bem recebida na época. Tocou pouco em rádio, era muito longa (quase sete minutos) para os padrões.
Com destinatário
No início de 1980, Gil se separa de sua terceira mulher, Sandra Gadelha. É um ano de poucos shows e muita produção. Uma das canções mais marcantes do período, Drão (lançada no disco Um banda um, 1982), é escrita logo após o fim do relacionamento. Versa sobre as transformações do amor. “Drão” é o apelido dado a Sandra por Bethânia. Já Caetano e Gil a chamavam “Drinha”. Caetano é prolífico em homenagear amigos e amores em canções. Vera gata foi escrita para Vera Zimmerman; Tigresa para Regina Casé; Branquinha e Não me arrependo para Paula Lavigne. Nos anos 1970, conheceu o baixista Dadi Carvalho. Então integrante dos Novos Baianos (mais tarde ele formaria A Cor do Som), Dadi ganha de Caetano O leãozinho (do álbum Bicho, 1977). Quando recebeu o presente, o músico acreditou que não fosse para ele, mas para Moreno Veloso, “porque parece um pouco música para criança”.
Transcendentais
De formação católica, Gil já admitiu que com a passagem do tempo foi se tornando “um indivíduo mais autônomo”. Afirmou ainda que seu deus é “vago, um mistério”. Esotérico (do álbum Doces Bárbaros, 1976), é sua tentativa de transpor a ideia do mistério divino para o campo do amor terreno. Andar com fé (de Um banda um, 1982) é uma homenagem ao linguajar caipira, aquele que “come” as sílabas finais (“Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá”). Da safra mais recente, a verborrágica Não tenho medo da morte (registrada em Banda larga cordel, 2008) foi escrita numa viagem a Sevilha. Em sua reflexão, ele discorre sobre o real medo: não é o da morte, e sim o de morrer. É, de longe, o momento mais confessional do show, quando Gil a interpreta só com a voz e o batucar do violão.
O que é que a Bahia tem
Cantando a própria aldeia desde o início da carreira, Gil e Caetano celebraram a Bahia de diversas formas. Eu vim da Bahia, canção dos primórdios da carreira de Gil, foi registrada por muitos intérpretes – Baden Powell e Gal Costa entre eles. Mas virou uma música de João Gilberto. Em seu álbum mais recente, Gilbertos samba (2014), uma ode à batida joão-gilbertiana traz novo registro. Ídolo maior de Caetano, João Gilberto ganha homenagem no show com uma versão de É luxo só (Ary Barroso/Luiz Peixoto), outra canção de que o baiano de Juazeiro se apoderou. A Bahia é apresentada ainda de uma maneira saudosa. Back in Bahia é da safra londrina e integra o repertório de Expresso 2222 (1972), primeiro álbum de Gil pós-exílio. Enquanto a letra ressalta a falta da terra natal, a melodia valoriza ritmos nordestinos.
No retorno do exílio, os baianos encontram mudanças. Gil se impressionou com a redução do afoxé Filhos de Gandhi, um dos blocos carnavalescos mais importantes e populares de Salvador. “Ao revê-lo numa situação de indigência, me deu uma dor seguida de um arroubo de filialidade; resolvi dar uma força”, disse ele, que se inscreveu no bloco e compôs Filhos de Gandhi (do álbum O viramundo, 1976). Ainda desfilou durante 13 anos consecutivos no bloco. A folia, claro, não fica de fora. Clássico do repertório inaugural do axé, Nossa gente (Avisa lá), de Roque Cordeiro, foi lançada em 1992 pelo Olodum. No ano seguinte, em Tropicália 2, Gil e Caetano fazem novo registro da canção, com menos percussão e mais corda. A luz de Tieta, da trilha do filme Tieta do agreste (1996), de Cacá Diegues, é Caetano para as massas. Foi um dos sucessos do carnaval soteropolitano de 1997.