Musica

Antonia Adnet faz viagem ao samba brasileiro dos anos 1930-50

Artista lança disco 'Tem %2b boogie woogie no samba'

Kiko Ferreira

A cantora Antonia Adnet, que assina direção musical e arranjos do disco, ao lado de seu pai, Mário Adnet
O presidente americano Franklin Roosevelt (1882-1945) é autor de uma frase sintomática: “Onde vão os nossos filmes, vão os nossos produtos, vai a nossa maneira de viver”. Entre os produtos mais bem vendidos pela indústria cultural dos Estados Unidos, sempre esteve a música. A máxima de Roosevelt foi cravada nos anos 1930, quando o que foi chamado de política de boa vizinhança trouxe ao país Orson Welles, Walt Disney e muitos artistas. E levou para lá símbolos meio caricatos de brasilidade, como o Zé Carioca e Carmem Miranda.


Foi nessa época, até o final dos anos 1950, que uma das variantes mais dançantes do jazz, o boogie woogie, encontrou no samba um parceiro eficiente. O terceiro disco da cantora, compositora, violonista e arranjadora carioca Antonia Adnet faz uma saborosa viagem no tempo e recupera o espírito de um dos casamentos que serviriam para influenciar a bossa nova e boa parte da música brasileira dos anos 1960. 'Tem %2b boogie woogie no samba' recupera onze temas, entre clássicos e raridades, que emulam o clima da época e ainda apresenta 'Astronauta no asfalto', um samba “falso antigo” (na definição de Nelson Motta) de Chico e Mário Adnet. Pai da moça, o segundo divide com ela a direção musical e os arranjos, além da convocação de um grupo de músicos de alta qualidade, como Marcos Nimrichter, Rodrigo Campello, Jorge Helder, Armando Marçal e Marcelo Caldi. Apoio mais do que eficiente para a voz pequena, mas segura de Antonia, que ainda convidou Roberta Sá, Alfredo Del-Penho e João Cavalcanti para garantir variedade vocal à empreitada.

ABERTURA O ar vintage do trabalho fica claro já na faixa de abertura, o sintomático 'Chiclete com banana' (Jackson do Pandeiro, Almir Castilho e Gordurinha), hit maior de Jackson do Pandeiro, que não pôde assinar a parceria na época, por problemas com editoras musicais. Nesta e na segunda faixa, 'Eu quero um samba' (Haroldo Barbosa e Janet de Almeida), o destaque fica para os sopros que colorem os arranjos. Já em 'Cadê a Jane?' (Wilson Baptsia e Erasmo Silva) são o piano de Marcos Nimrichter e a voz de Pedro Paulo Malta que apimentam a narrativa. Gravada por Elza Soares como 'O samba está com tudo' e lançada por Araci de Almeida em 1957, 'Conversa de samba' (Denis Brean e Oswaldo Guilherme) celebra o ritmo brasileiro como prato principal de qualquer festa e traz o trompete de Aquiles Moraes defendendo o estatuto da gafieira.

Lançado por Blecaute em 1950 e atualizado por um dos autores, Haroldo Barbosa (o outro é Geraldo Jaques), doze anos depois, 'Joãozinho boa-pinta' apresenta um tipo antológico, cantado em eficaz dueto com João Cavalcanti. Pioneiro na citação ao casamento dos dois ritmos, 'Boogie woogie na favela' (Denis Brean) foi sucesso de Ciro Monteiro em 1945 que Antonia relê com leveza e um ar de inocência que dão outra dimensão ao samba. Na sequência, 'O que é que tem?', resposta carioca a 'O que é que a baiana tem', de Caymmi, é a faixa mais curiosa. Lançada por Dircinha Batista em 1939, andava injustamente esquecida, apesar de não fazer sombra à obra do baiano Dorival. Roberta Sá aparece em discreto dueto entre amigas.

A ponte mais explícita com a bossa vem a seguir, com releituras de dois clássicos do repertório de João Gilberto, 'Tim-tim por tim-tim' (Hartoldo Barbosa/Geraldo Jaques) e 'Pra que discutir com madame' (Janet de Almeida e Haroldo Barbosa), que ela reinterpreta com naturalidade, sem sentir o peso do desafio. E ainda com a voz de Alfredo Del-Penho ajudando nos vocais na segunda. O mesmo acontece com o hit gravado por Linda batista em 1950, 'Baiana no Harlem' (Denis Brean/ Oswaldo Guilherme), sobre o furor que uma baiana legítima causaria no bairro nova-iorquino.

O disco termina com o falso antigo 'Astronauta no asfalto' e 'Adeus, América' (Haroldo Barbosa e Geraldo Jaques), deixando vontade de voltar à primeira faixa, preparar um gim com tônica ou um cuba-libre e viajar sem medo a tempos em que a música brasileira era mais alegre, sofisticada e deliciosamente dançante.