Registrado no estúdio caseiro (ou “quarto-estúdio”) do tecladista da banda de Ivan, Marco Brito, o álbum é batizado pelo compositor como “um projeto-diversão formado por canções lado B”. O método empírico “vamos sair tocando que as ideias vão surgindo” resultou em um disco mais íntimo do que intimista, com arranjos minimalistas, mas eficazes. Os vocais surgem confortáveis – muito distantes do estilo gongórico que afastou alguns ouvintes do passado da obra de Ivan, um dos autores mais originais da MPB.
“Nunca cantei tanto em minha vida”, afirma Ivan Lins no texto de apresentação do CD. “Todas as vozes deste disco, todas mesmo, são minhas (com exceção dos contracantos lindos da cantora Eve, em 'Joana dos barcos'). Usando eletrônica ou cantando pra valer, consegui um resultado surpreendente. Tivemos mais duas participações especiais: o superguitarrista Léo Amuedo, em Que quer de mim, e o gaitista suíço Gregoire Maret, em 'De nosso amor tão sincero'”, informa ele.
Prestes a completar 70 anos, em 16 de junho, Ivan tem 46 discos gravados, carreira internacional consolidada e o respeito de grandes nomes do jazz, como o pianista Don Grusin, que considera Cantor da noite, homenagem à cena musical carioca dos anos 1960 e 1970, originalmente gravada por Leny Andrade, a melodia mais bonita que já ouviu.
Com vários projetos, Ivan Lins prepara o lançamento, em 2016, de sua biografia musical a cargo da pianista Thais Nicodemos. Um balé será criado a partir da canção 'Joana dos barcos', com livreto de Vitor Martins. Ele planeja também gravar um álbum com o paulistano Rafael Altério, recheado de canções de inspiração sertaneja, além de um projeto de fados com artistas da nova cena portuguesa.
Por telefone, Ivan Lins falou ao Estado de Minas sobre sua trajetória e comentou o quadro político do Brasil e da América Latina, fonte de inspiração para algumas canções do novo álbum.
O DISCO
“'América, Brasil' foi um disco feito meio sem querer. Começou como brincadeira. Eu e meu tecladista, Marco Brito, começamos a tocar no estúdio caseiro dele e foi ficando divertido. Tocamos tudo e fiz todas as vozes. Só no final chamamos o baterista Teo Lima para incluir bateria e percussão, porque achamos que tinha loops demais.”
AMÉRICA, BRASIL
“Essa música foi feita para disco 'Awa yiô' (1993), mas só saiu na edição americana. Não sei por quê. Fala da realidade do Brasil deixada pelo Collor. Acho que não mudou nada. Hoje, ele é amigo do Lula e da Dilma.”
DO OIAPOQUE AO CHUÍ
“Essa música foi feita em 1984, para o Lula. Quando Vitor ficou sabendo que iria regravá-la, mudou o final. Trocou ‘rei desejado’ por ‘rei esperado’. Lula foi uma grande decepção. Chorei na posse dele. Era a primeira vez que teríamos um humanista na Presidência, mas entrou um jogador de cassino, um gambler. Eu tinha aquela visão de que um sujeito com 40 milhões de votos iria mudar o jeito de governar, poderia peitar qualquer Congresso. Bastaria fazer da forma mais clara possível, transparente, dizer: ‘Vou mandar tal lei, vou botar ao vivo na TV a votação para o povo brasileiro saber que a lei é importante pra melhorar a vida dele’. Queria ver alguém votar contra. Mas não foi assim. Ele perdeu essa chance, assim como a Dilma.”
JOANA DOS BARCOS
“Foi uma das músicas criadas quando eu tocava violão, nos anos 1970. Na época, fiz uma afinação diferente. Inicialmente, era pra ser uma peça de teatro, mas agora vai virar um balé. A história do Vitor é linda. Joana é uma santa que fica louca porque queria ter namorado, filho. Ela enlouquece, rouba uma criança, é expulsa da comunidade e colocada num barco. Aparece em outra aldeia de pescadores
e acontece um milagre. Tem um final triste e bonito.”
LUXO DO LIXO
“Fizemos essa canção, em 1980, para um bloco de carnaval do Rio que nunca saiu, pois os donos saíram na porrada (risos). Achei-a no ano passado, numa fita cassete, e resolvemos gravar aproveitando o título. Luxo, pra mim, é a felicidade. E lixo é o Congresso brasileiro.”
VOAR
“Acho os versos ‘nossos olhos são de águia/ coração de beija-flor’ dos mais bonitos do Vitor. Fiz esta música em 1982 para o Quincy Jones, mas não consegui acabar. Terminei-a quando Simone me pediu uma canção para seu disco
'Baiana da gema'.”
POLÍTICA
“Os congressos dos países latinos andam muito parecidos. Essa desigualdade toda e os políticos agem de má-fé, com mediocridade. O discurso na eleição é um. Depois, não acontece nada. Acho isso um lixo. Bato de frente sempre que posso.”
SINFÔNICO
“Os músicos Marinho Boffa, Alberto Rozenblit e Paulo Calazans estão trabalhando minhas canções para um disco sinfônico com arranjos em linguagem erudita – sem bateria, sem baixo elétrico. Mostrei pra eles uma gravação de celular de um concerto nos Estados Unidos, em 1999, com versões sinfônicas de minhas músicas pela orquestra de Pittsburgh. Eles gostaram. Nós nos reunimos sempre num bar português aqui perto de casa para comer bacalhau, tomar vinho tinto e falar do projeto. Deve sair
em 2016.”
AUTODIDATA
“Certa vez, tentei ter professora de piano, a mesma do Luiz Eça e do Gilson Peranzzetta. Ela me pediu pra tocar e virou de costas. Disse: ‘Você está assassinando a técnica do piano. É bonito, mas só consigo te ouvir de costas’ (risos). A professora avisou que era melhor eu não ter aula, pois ela teria que me desconstruir e construir de novo.”
FAIXA A FAIXA
'Cantoria'
'Joana dos barcos'
'Luxo do lixo'
'E aí'
'Cantor da noite'
'Do Oiapoque ao Chuí'
'Que quer de mim'
'Coragem mulher'
'Voar'
'Água doce'
'Enquanto a gente batuca'
'América, Brasil'
'De nosso amor tão sincero/Vitoriosa'
Só clássicos
Parceiros desde os anos 1970, Ivan Lins e Vitor Martins (foto) formam uma dupla que fez história
na música popular brasileira. Entre os clássicos compostos por eles, estão Começar de novo, Somos todos iguais nesta noite, Cartomante, Abre alas e Aos nossos filhos, que ganhou versão arrebatadora de Elis Regina no álbum Saudade do Brasil, lançado em 1980.