O que mais fascina o documentarista Nelson Hoineff, de 66 anos, em Cauby Peixoto, 84, é o eterno recomeço do cantor, que, não por acaso, está de volta à cena em variadas frentes, depois do susto pregado pela diabete, que o levou a uma internação recente.
Hoineff é o diretor do documentário Cauby – Começaria tudo outra vez, que estreia na próxima quinta-feira em cinco capitais, incluindo Belo Horizonte. Apesar da demora de quase uma década para a conclusão do filme, o título se manteve todo o tempo na cabeça do cineasta – e sempre pertinente.
Hoineff decidiu abordar a trajetória do cantor – um dos raríssimos remanescentes da era de ouro do rádio brasileiro, ao lado de Angela Maria, 86, confrontando permanentemente o artista e o personagem que ele criou para si.
“O recomeço constante é um desejo do próprio Cauby, que, além das inúmeras plásticas (nunca admitidas), renova o repertório com uma enorme frequência, às vezes para melhor, às vezes para pior”, afirma Hoineff, que diz encontrar paralelos da trajetória do cantor apenas em nomes como os de Beth Carvalho, Caetano Veloso e João Gilberto. “Além do dom vocal, nos shows eles praticamente contam uma história.”
NOVO DISCO Não só a estreia de Cauby – Começaria tudo outra vez está jogando novas luzes sobre o cantor, cujos fãs vão de “uma velinha de 90 anos até um casal de 20 anos”, como observa Hoineff. Até o fim do mês, deve ser lançado o disco Cauby sings Nat King Cole, com shows no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mais: recuperado da crise provocada pela diabete, o eterno intérprete de Conceição voltará a se apresentar no Bar Brahma, no Centro de São Paulo, onde cumpre temporada semanal há 12 anos.
No filme, Cauby surge literalmente brilhante, vestindo um blaser de tecido resplandescente. A canção escolhida para abrir o documentário é Minha voz, minha vida, composta especialmente para ele, por Caetano Veloso. Ao longo dos 90 minutos de exibição, o público se assenta em três pilares: além da ideia do eterno recomeço, o modelo de interpretação atemporal de Cauby Peixoto e a sinergia entre ele e a plateia, que transcende gerações.
No início do filme, o espectador é levado para o subúrbio carioca (Olaria) onde vive Tadeu Kebian, de 15 anos. Fã incondicional do cantor, que conhece na infância por influência de seu avô, ao ficar sabendo da realização do documentário, ele tomou a iniciativa de entrar em contato com a produção.
Que ninguém vá assistir a Cauby – Começaria tudo outra vez em busca de revelações. Figura historicamente contraditória e dúbia, o cantor até se expressa sobre a sexualidade, admitindo experiências homossexuais na infância. Mas acaba manifestando preconceito sobre o tema, além de se atribuir um romance com a atriz Dorinha Duval, que a própria nega no decorrer do filme.
DUALIDADES Como lembra o biógrafo Rodrigo Faour, em depoimento no filme, ao longo de sua trajetória, o cantor se destacou pelas dualidades: chique e brega, popular e sofisticado, masculino e feminino. Segundo Thiago Marques Luiz, produtor musical de Cauby Peixoto, ele gostou do filme, assim como do musical Cauby! Cauby!, de Flávio Marinho, protagonizado por Diogo Vilela, e da biografia Bastidores – Cauby Peixoto – 50 anos da voz e do mito, de Faour.
Com farto material televisivo de arquivo (TVs Excelsior, Tupi, Globo, Record, CNT e TVE) à sua disposição, Hoineff leva para a tela cenários antológicos como o auditório da Rádio Nacional e a Confeitaria Colombo, além de trazer à tona personagens como Edson Di Veras (1914-2015), o também famoso empresário do cantor, que não poupou esforços para transformá-lo em ídolo. Veras mandou extrair toda a arcada dentária de Cauby, aos 20 anos, para trocá-la por uma prótese, e contratou as famosas “macacas de auditório” que acompanhavam o artista das emissoras de rádio às ruas, sempre aos gritos.
Entre os momentos mais consagradores da carreira do cantor, Nelson Hoineff destaca a volta de Cauby ao Rio, nos anos 1950, depois da temporada americana, onde, além de se encontrar com Nat King Cole, Louis Armstrong, Bing Crosby e Carmen Miranda, fez um único filme em Hollywood (Jamboree, de Roy Lockwwod); e a gravação de um disco com composições originais de Caetano Veloso (Cauby, Cauby) e Chico Buarque (Bastidores), entre outros astros da MPB, já nos anos 1980. Ainda nos 1950, ele foi o primeiro a interpretar e dançar um rock (Rock’n ’roll em Copacabana), que gravaria a seguir.
Preparando-se para voltar a encenar, no ano que vem, o musical em homenagem a Cauby, Diogo Vilela diz que será a primeira remontagem da carreira dele. “E como disseram que Cauby estava desanimadinho, acho que será uma boa homenageá-lo em vida”, diz o ator.
Para Vilela, trata-se de “um intérprete precioso de canções, que faz parte do inconsciente coletivo brasileiro”, a exemplo do mineiro Ary Barroso, que ele também interpretou no teatro, além de Nelson Gonçalves. “Temos de parar com a nossa falta de memória e aprender a gostar da gente mesmo. No Brasil, vive-se o mito do importado”, afirma Vilela, detentor dos prêmios Shell e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) pelo espetáculo. Ele ficou dois anos estudando canto e se aperfeiçoando para viver Cauby.
Um cantor polêmico que se fez eterno
Rodrigo Faour*
Hoje, todo mundo fala bem de Cauby. Ainda bem! Mas nem sempre foi assim. Cantor polêmico, incomodou muita gente no início de sua explosão, a partir da gravação de Blue gardenia, seu primeiro grande sucesso, em 1954. Ocorre que foi lançado com uma agressiva estratégia de marketing do saudoso empresário Di Veras, para que em pouco tempo se tornasse “o maior cantor do Brasil”, o que de fato se concretizou.
Para conseguir manter os holofotes de uma indústria cultural ainda em formação sobre seu pupilo, valia quase tudo o que depois passou a ser banal com outros artistas: deu-lhe um banho de loja, plantou notícias, criou slogans, sugestionou que as fãs suspirassem e desmaiassem por ele... Fora o fato de que nem sempre se conseguia ouvi-lo direito no rádio, porque suas fãs estavam numa constante histeria coletiva.
Os mais refinados torciam o nariz, ainda mais que o rapaz tinha um jeito delicado, incomum para um país ainda mais machista do que hoje. O tempo passou, o repertório de grandes versões e sambas-canções acrescentou bossas novas e umas breguices aqui e ali. Depois, mais longe dos estúdios, virou o rei da noite, cantando em boates – até na de sua propriedade, o Drink, em Copacabana, entre 1964 e 1968 – e churrascarias do país inteiro.
Em 1980, a redenção! Munido de um repertório reciclado e de uma nova estratégia de marketing, desta vez da Rede Globo e da Som Livre, Cauby voltou à moda – e ganhou aquilo que lhe faltava, o prestígio dos formadores de opinião, incluindo a grande imprensa. Descobriram que Cauby era um grande cantor subestimado.
E a partir de então, não passa cinco anos sem que alguém o redescubra e seu legado venha à tona. E ele soube tirar partido disso. Em busca do tempo perdido, gravou muito. Tudo o que quis e em outros tempos não teve oportunidade. Além disso, manteve o estilo, o glamour, a delicadeza e a extravagância, mostrando que imagem, voz, estilo e respeito ao público podem ser eternos.
*Rodrigo Faour é jornalista, produtor, historiador de música brasileira e biógrafo de Cauby Peixoto
Hoineff é o diretor do documentário Cauby – Começaria tudo outra vez, que estreia na próxima quinta-feira em cinco capitais, incluindo Belo Horizonte. Apesar da demora de quase uma década para a conclusão do filme, o título se manteve todo o tempo na cabeça do cineasta – e sempre pertinente.
Hoineff decidiu abordar a trajetória do cantor – um dos raríssimos remanescentes da era de ouro do rádio brasileiro, ao lado de Angela Maria, 86, confrontando permanentemente o artista e o personagem que ele criou para si.
“O recomeço constante é um desejo do próprio Cauby, que, além das inúmeras plásticas (nunca admitidas), renova o repertório com uma enorme frequência, às vezes para melhor, às vezes para pior”, afirma Hoineff, que diz encontrar paralelos da trajetória do cantor apenas em nomes como os de Beth Carvalho, Caetano Veloso e João Gilberto. “Além do dom vocal, nos shows eles praticamente contam uma história.”
NOVO DISCO Não só a estreia de Cauby – Começaria tudo outra vez está jogando novas luzes sobre o cantor, cujos fãs vão de “uma velinha de 90 anos até um casal de 20 anos”, como observa Hoineff. Até o fim do mês, deve ser lançado o disco Cauby sings Nat King Cole, com shows no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mais: recuperado da crise provocada pela diabete, o eterno intérprete de Conceição voltará a se apresentar no Bar Brahma, no Centro de São Paulo, onde cumpre temporada semanal há 12 anos.
No filme, Cauby surge literalmente brilhante, vestindo um blaser de tecido resplandescente. A canção escolhida para abrir o documentário é Minha voz, minha vida, composta especialmente para ele, por Caetano Veloso. Ao longo dos 90 minutos de exibição, o público se assenta em três pilares: além da ideia do eterno recomeço, o modelo de interpretação atemporal de Cauby Peixoto e a sinergia entre ele e a plateia, que transcende gerações.
No início do filme, o espectador é levado para o subúrbio carioca (Olaria) onde vive Tadeu Kebian, de 15 anos. Fã incondicional do cantor, que conhece na infância por influência de seu avô, ao ficar sabendo da realização do documentário, ele tomou a iniciativa de entrar em contato com a produção.
Que ninguém vá assistir a Cauby – Começaria tudo outra vez em busca de revelações. Figura historicamente contraditória e dúbia, o cantor até se expressa sobre a sexualidade, admitindo experiências homossexuais na infância. Mas acaba manifestando preconceito sobre o tema, além de se atribuir um romance com a atriz Dorinha Duval, que a própria nega no decorrer do filme.
DUALIDADES Como lembra o biógrafo Rodrigo Faour, em depoimento no filme, ao longo de sua trajetória, o cantor se destacou pelas dualidades: chique e brega, popular e sofisticado, masculino e feminino. Segundo Thiago Marques Luiz, produtor musical de Cauby Peixoto, ele gostou do filme, assim como do musical Cauby! Cauby!, de Flávio Marinho, protagonizado por Diogo Vilela, e da biografia Bastidores – Cauby Peixoto – 50 anos da voz e do mito, de Faour.
Com farto material televisivo de arquivo (TVs Excelsior, Tupi, Globo, Record, CNT e TVE) à sua disposição, Hoineff leva para a tela cenários antológicos como o auditório da Rádio Nacional e a Confeitaria Colombo, além de trazer à tona personagens como Edson Di Veras (1914-2015), o também famoso empresário do cantor, que não poupou esforços para transformá-lo em ídolo. Veras mandou extrair toda a arcada dentária de Cauby, aos 20 anos, para trocá-la por uma prótese, e contratou as famosas “macacas de auditório” que acompanhavam o artista das emissoras de rádio às ruas, sempre aos gritos.
Entre os momentos mais consagradores da carreira do cantor, Nelson Hoineff destaca a volta de Cauby ao Rio, nos anos 1950, depois da temporada americana, onde, além de se encontrar com Nat King Cole, Louis Armstrong, Bing Crosby e Carmen Miranda, fez um único filme em Hollywood (Jamboree, de Roy Lockwwod); e a gravação de um disco com composições originais de Caetano Veloso (Cauby, Cauby) e Chico Buarque (Bastidores), entre outros astros da MPB, já nos anos 1980. Ainda nos 1950, ele foi o primeiro a interpretar e dançar um rock (Rock’n ’roll em Copacabana), que gravaria a seguir.
Preparando-se para voltar a encenar, no ano que vem, o musical em homenagem a Cauby, Diogo Vilela diz que será a primeira remontagem da carreira dele. “E como disseram que Cauby estava desanimadinho, acho que será uma boa homenageá-lo em vida”, diz o ator.
Para Vilela, trata-se de “um intérprete precioso de canções, que faz parte do inconsciente coletivo brasileiro”, a exemplo do mineiro Ary Barroso, que ele também interpretou no teatro, além de Nelson Gonçalves. “Temos de parar com a nossa falta de memória e aprender a gostar da gente mesmo. No Brasil, vive-se o mito do importado”, afirma Vilela, detentor dos prêmios Shell e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) pelo espetáculo. Ele ficou dois anos estudando canto e se aperfeiçoando para viver Cauby.
Um cantor polêmico que se fez eterno
Rodrigo Faour*
Hoje, todo mundo fala bem de Cauby. Ainda bem! Mas nem sempre foi assim. Cantor polêmico, incomodou muita gente no início de sua explosão, a partir da gravação de Blue gardenia, seu primeiro grande sucesso, em 1954. Ocorre que foi lançado com uma agressiva estratégia de marketing do saudoso empresário Di Veras, para que em pouco tempo se tornasse “o maior cantor do Brasil”, o que de fato se concretizou.
Para conseguir manter os holofotes de uma indústria cultural ainda em formação sobre seu pupilo, valia quase tudo o que depois passou a ser banal com outros artistas: deu-lhe um banho de loja, plantou notícias, criou slogans, sugestionou que as fãs suspirassem e desmaiassem por ele... Fora o fato de que nem sempre se conseguia ouvi-lo direito no rádio, porque suas fãs estavam numa constante histeria coletiva.
Os mais refinados torciam o nariz, ainda mais que o rapaz tinha um jeito delicado, incomum para um país ainda mais machista do que hoje. O tempo passou, o repertório de grandes versões e sambas-canções acrescentou bossas novas e umas breguices aqui e ali. Depois, mais longe dos estúdios, virou o rei da noite, cantando em boates – até na de sua propriedade, o Drink, em Copacabana, entre 1964 e 1968 – e churrascarias do país inteiro.
Em 1980, a redenção! Munido de um repertório reciclado e de uma nova estratégia de marketing, desta vez da Rede Globo e da Som Livre, Cauby voltou à moda – e ganhou aquilo que lhe faltava, o prestígio dos formadores de opinião, incluindo a grande imprensa. Descobriram que Cauby era um grande cantor subestimado.
E a partir de então, não passa cinco anos sem que alguém o redescubra e seu legado venha à tona. E ele soube tirar partido disso. Em busca do tempo perdido, gravou muito. Tudo o que quis e em outros tempos não teve oportunidade. Além disso, manteve o estilo, o glamour, a delicadeza e a extravagância, mostrando que imagem, voz, estilo e respeito ao público podem ser eternos.
*Rodrigo Faour é jornalista, produtor, historiador de música brasileira e biógrafo de Cauby Peixoto