Billie Holiday completaria 100 anos hoje. E ela, a maior cantora que o jazz já teve, mantém intactos, 55 anos após sua morte, seu poder de sedução, a magia sofrida de sua voz hesitante e a intensa carga emocional – sem paralelo – que nos tira de nossa zona de conforto e nos joga, desnudados, com nossas próprias contradições. Nós, o público, não cansaremos jamais de performances lancinantes de clássicos como 'Strange fruit', 'Don’t explain', 'Good morning heartache'.
Enquanto o mundo continua curtindo sua arte, estudiosos e pesquisadores multiplicam-se, tentando explicar esse fenômeno que se firmou numa curta vida de 44 anos, marcada pela prostituição precoce, drogas, prisões e racismo. A vítima perfeita, conceito fácil de se colar nela, mas longe da verdade, afirma o jornalista e pesquisador norte-americano John Szwed, autor do mais recente livro sobre a cantora: 'Billie Holiday: The musician and the myth' (240 págs., Viking, e-book Amazon).
RIGOR Rigoroso e com agudo espírito investigativo, Szwed divide seu livro em duas vertentes claras: de um lado, revela pela primeira vez trechos que foram censurados da autobiografia 'Lady sings the blues', que Billie coescreveu com William Dufy em 1956; de outro, é o primeiro a analisar tecnicamente a arte do maior mito vocal do século 20.
“Os fatos e episódios cortados de sua autobiografia que discuto no capítulo dois são novos para o público, sobretudo sua amizade com compositores, cineastas, magnatas e atores famosos”, afirma Szwed.
Na segunda parte, ele adota postura radical. Rejeitando a tese de que Billie cantava expondo suas vísceras, Szwed a concebe preocupada em construir interpretações originais do que cantava. Ou seja, Billie não era um ser humano despedaçado que expunha suas misérias no palco e levava por isso o público a chorar com ela. Apesar de sua vida pessoal ser mesmo despedaçada. Era uma profissional do canto.
A propósito, Szwed cita um dos apelidos de Billie, “Nossa Senhora das Dores”, e a famosa frase da escritora Elisabeth Hardwick: “Você precisa ter alguém ao seu lado quando ouve Billie. Do contrário, pode se suicidar”. Mas apressa-se em esclarecer que ela precisa ser entendida como uma “grande intérprete”. O que chega a nossos ouvidos e mentes é o resultado de um processo voluntário e consciente, a compreensão dos versos e de seu talento para recriá-los.
TORMENTOS Se não tivesse passado pelos tormentos sexuais, sociais e das drogas, ainda assim seria a mesma cantora? “É evidente que ela revolve suas próprias emoções e memórias e as usa ao cantar”, admite Szwed. “Mas, ainda assim, ela está atuando.”
Que arte é essa, no caso de Billie? Ela foi a primeira a desenvolver a técnica de microfone e desse modo estabelecer uma performance vocal meio cantando, meio falando. Passear em torno da nota convencionalmente certa, adejar em torno com vibrato. E sua voz de contralto era pequenininha, não chegando a duas oitavas. Mesmo sem saber ler música, “é a única cantora que conheço a ter a habilidade de retardar a nota em relação ao acompanhamento instrumental sem se perder; nenhuma de suas imitadoras consegue reproduzir isso. Como aprendeu a fazer isso, não sei.”
Billie não era uma cantora de jazz nem de blues, diz Szwed. Ela não improvisava, apenas “parafraseava as melodias, como Lester Young. Mas ele parafraseava menos, queria contar uma história, e foi muito influenciado por ela”.
Nem era cantora de blues (gravou apenas uma dezena deles ao longo de sua carreira): “Quando começou a cantar, praticamente toda cantora negra era chamada de blues singer, cantasse ou não o blues. As cantoras brancas que interpretavam canções tristes eram chamadas de torch singers. Billie invadiu o chamado songbook branco, porém levando consigo o estilo musical negro.”
De acordo com o autor, Billie Holiday “foi exposta ao público como drogada e criminosa, como nenhuma outra figura do show biz antes dela”. Segundo ele, “para continuar trabalhando, ela teve de encontrar meios de forjar uma imagem mais aceitável. Assim, cada entrevista e cada artigo que escreveu serviram para este propósito”