O registro foi feito quando seu primogênito não tinha a menor consciência dos atos da mãe. Foi escrito por Elis em 14 de junho de 1971, quando o garoto estava prestes a completar um ano. A carta só deveria ser lida por ele quando completasse 18. Após a morte de Elis, em 19 de janeiro de 1982, sua amiga Orphila Negrão encontrou o documento. Guardou a missiva ao longo de todos estes anos. João Marcello só foi tomar conhecimento dela recentemente, prestes a completar 45 anos.
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Convidado para escrever um perfil que celebrasse a cantora quando dos 30 anos de sua morte (em 2012), não levou mais do que duas entrevistas para decidir mudar o projeto. Ao invés de um retrato simpático e rasteiro diante da urgência (deveria ser entregue em seis meses), um prazo maior e um mergulho profundo em sua trajetória.
Em 'Elis Regina – Nada será como antes' (Master Books), Julio Maria traça um retrato de Elis com uma escrita fluida, embasada em pesquisa e longos depoimentos. Evitando o tom preguiçoso das referências que assolam narrativas do gênero, ele consegue preencher 400 páginas com uma grande reportagem que emociona e exaspera.
Muitas histórias mal contadas – quando brigava com uma pessoa, ela a apagava de sua vida, inventando uma nova versão do caso, sem que o personagem estivesse presente – que o autor esclarece em nova perspectiva. Tem ainda o registro inédito de pessoas muito próximas a ela, que nunca haviam revelado alguns fatos.
Milton Nascimento, o primeiro dos novos compositores revelados por ela (Fagner, Ivan Lins, João Bosco), avesso a longas conversas com jornalistas, surge no livro em várias ocasiões. Há tanto o registro do primeiro momento – ele, intimidado; ela ignorando-o – quanto do último, quando o cantor passou um dia inteiro sozinho na praia ao saber da morte de Elis.
Era genial e geniosa em igual quantidade. Cantoras sofreram por sua causa, algumas irreversivelmente. Não admitia que ninguém lhe fizesse sombra. Beth Carvalho ficou 20 anos sem falar com Cesar Camargo Mariano quando ele “roubou” Folhas secas, fazendo com que Elis a lançasse antes.
Elis demitiu sua própria banda do palco ao fim de um show – Toninho Horta fazia parte da formação. Mas soube ser generosa com quem lhe era caro – conseguiu um aumento substancial para o músico Caçulinha, no programa O fino da bossa, na base do “é assim que eu quero”. Sofreu de amores – seu ruidoso casamento com Bôscoli é o melhor exemplo – mas fez sofrer também. Seu então produtor, Nelson Motta, se separou da mulher para ficar com ela e foi despachado num telefonema frio.
Teve que se curvar a Tom Jobim para gravar o clássico Elis e Tom (o maestro a havia dispensado quando a conheceu). E é na música que o gênio se sobrepõe ao mau gênio. Não haverá outra como Elis, é o que Nada será como antes deixa claro. Ainda que em mais de um momento a biografia não faça um retrato simpático da biografada, é um volume precioso para conhecê-la.
TRECHO de 'Elis Regina – Nada será como antes'
Cesar Camargo Mariano, pai de Pedro, passou por ele sem muitos carinhos. Seus olhos estavam tristes e vermelhos, sua barba feita e um braço enfaixado. De tudo, o mais estranho era o fato de estar ali pela primeira vez em pouco mais de seis meses, desde que havia se separado de Elis. O menino dirigiu-se aos adultos para saber o que havia de errado. 'Nada, Pedro, vai brincar', disse uma das empregadas. O telefone da casa tocou e seu irmão João atendeu. Era o jornalista de uma emissora de rádio. 'Bom-dia. Por favor, é da casa da Elis Regina?' 'É, mas ela não está', respondeu o garoto. 'É só para confirmar: soubemos que ela morreu nesta manhã, é isso mesmo?' Com a maturidade de um menino de 11 anos, João sorriu sem graça daquilo que lhe pareceu piada, desligou o telefone e voltou a brincar. Pedro passou pela sala, ligou a TV e se sentou para assistir a um desenho no instante em que um plantão do Jornal Hoje, da Globo, começou a lhe dar as respostas que os adultos haviam negado.”
TRÊS PERGUNTAS PARA JULIO MARIA
'Nada será como antes' é a primeira biografia de peso publicada no país após a polêmica das biografias não autorizadas. Seu livro nasceu como uma encomenda da editora Master Books, da apresentadora Eliana, ex-mulher de João Marcello Bôscoli. Que embates enfrentou no processo?
Sabia que iria haver patrulha por causa da editora. Tínhamos que seguir a legislação de hoje, então iríamos submeter o livro aos herdeiros. Quis uma garantia da editora de que, se houvesse algum pedido surreal, se quisessem mutilar o livro, eu poderia escolher não o publicar. Pois no momento em que há um monte de biografia embargada, essa família me deu carta branca para escrever.
O João Marcello demorou a ler. Finalmente me chamou para conversar, e disse que a demora aconteceu porque ele não aguentava ler algumas partes, então parava por alguns dias e voltava depois. Disse: 'Em alguns momentos, gostei menos da minha mãe'. Não me pediu para tirar nada. O Pedro Mariano também demorou para responder. Quando falou comigo, disse que finalmente havia conseguido conhecer a mãe. 'Também agora me conheço um pouco melhor.' E a Maria Rita, como não me respondia, fui encontrar no camarim depois de um show. Disse que não iria ler o livro, mas que poderia publicá-lo, que não seria ela a pessoa a dizer se havia gostado ou não.
A morte de Elis gerou muita polêmica. Como conseguiu o inquérito policial, que vem à luz somente em seu livro?
É uma questão simples: ninguém havia ido atrás antes. É um documento público, e eu pedi para desarquivar. Parecia meio molhado, todo manchado, enrugado. Ele estava no arquivo do Tribunal de Justiça e quase foi perdido por causa de uma enchente. O documento traz todos os depoimentos dos envolvidos, todos que estiveram com Elis naquele dia. E ali está a causa da morte, ingestão de álcool. Ouvi 130 pessoas, obviamente não queria que tivesse um fiozinho solto. Há teorias como suicídio, assassinato. Mas não há indício nenhum. O que há de seriíssimo é que mexeram no quarto. O irmão da Elis (Rogério) volta lá e limpa o quarto, que estava sujo de cocaína. Também recoloca a fechadura. Então, quando a perícia chega, está diferente. Mas o próprio Samuel (MacDowell, que namorava Elis à época) disse que sempre achou que havia sido droga mesmo. A questão é que, 33 anos depois, o tempo torna-se um aliado. As pessoas não estão mais traumatizadas, tem gente que consumia droga com a Elis e se culpava. O tempo absolve.
O que fez de Elis a maior cantora do Brasil?
Caras com mais bagagem técnica como o Edu Lobo definem a Elis como instrumentista. Sem ter conhecimento teórico, ela atua como se fosse uma instrumentista de jazz, pedia acordes maiores ou menores. E o tempo todo ela está economizando a voz, nunca vai ao limite. Cada interpretação é um coelho que tira da cartola. Sua vocalização pode trazer tanto influência de Ella Fitzgerald quanto de Ângela Maria e Cauby Peixoto, sem a mesma empostação. É uma coleção que permite com que cada disco seja uma história. Então, temos que reconhecer que, com Elis, não teve para mais ninguém.