Toda crise gera uma oportunidade. Ao saber da indefinição quanto ao produtor do disco de estreia da Legião, o jornalista carioca José Emílio Rondeau se oferece para o trabalho. Sua experiência era quase nula: tinha co-produzido o segundo disco dos punks baianos Camisa de Vênus. Mas já conhecia a Legião por meio das fitas toscas, capinhas estilizadas, recebidas pela mulher, Ana Maria Bahiana, e de um amigo jornalista, Tom Leão. Ficara especialmente impactado com as letras, com a voz. Conhecia o tipo de música que eles faziam e intuía onde eles queriam chegar; tinha certeza que poderia ajudá-los a atingir o objetivo. A companhia escala um engenheiro de som experiente, Amaro Moço. Mayrton Bahia mesmo envolvido com o terceiro disco da Blitz, assume a direção de produção. Banda e gravadora estão prontos para tentar outra vez. A Legião desembarca no Rio com um integrante a mais. Tem agora um baixista. Apelidos: Negrete, Billy. Nome: Renato.
saiba mais
Negrete gostava de jogar vôlei, andar de skate, fazer capoeira, participar de torneios de queda-de-braço. Além de intensa atividade física, curtia música. Aos seis anos, já dominava o arcodeon. Na adolescência, passou a curtir rock pesado: Canned Heat, Black Sabbath, Uriah Heep, Led Zeppelin. Um dia escutou:
— Você é negro, não gosta de escola, não toca samba, não joga bola? Vai ser lixeiro.
Negrete se insurgiu. Por que tinha que tocar música brasileira? Por que Brasília tinha que copiar o Rio de Janeiro? E por que os baixistas tinham que ficar em segundo plano? Ao menos para a terceira indagação, vislumbrou a resposta ao ver Stanley Clarke, Jaco Pastorius e o Earth, Wind & Fire em ação. Passa a freqüentar a Colina, monta a banda Metamorfose, acompanha a trajetória do Aborto Elétrico. Não tem grande trabalho para virar punk: sempre usa a mesma calça, o mesmo par de tênis. Ao conhecê-lo, Renato pergunta o signo e o ascendente. Gosta das respostas, gosta de Negrete. E conta que estava temporariamente impossibilitado de tocar baixo. Tinha cortado o próprio pulso.
Frustrado pelo impasse com a Emi-Odeon, Renato vive dias infelizes em Brasília. Aos amigos próximos, conta que tem sérios desentendimentos com os pais. Ao saber que a mãe proibiu Carmem Teresa de sair com as primas, resolve interceder:
— Mãe, deixa as meninas irem para a festa!
— Não, Júnior, elas não vão sair!
Furioso, ele corre para o quarto. Alguns minutos depois, Carminha ouve o grito:
— Mãe, vem aqui! Me ajuda!
Ao entrar no quarto do meio, Carminha vê o filho sangrar. O corte no pulso esquerdo faz o sangue esguichar no carpete. Mais assustado do que desesperado, Renato toma o cuidado de direcionar o sangramento para a lixeira de cortiça. A irmã e as primas também correm para ver. Geórgia tem um ataque de choro, se descontrola. A dona da casa não se abala. Está furiosa com a atitude do filho, considera o ato uma grande molecagem. Vai até o quarto e desperta o marido:
— Renato, acorda. Temos que ir para o hospital!
Tentam estancar o sangramento e seguem para o hospital mais próximo. O atendimento demora. A irmã e as primas se exasperam, à espera de notícias. Quando voltam, já é madrugada. Renato, suturas no pulso, está todo enfaixado; por pouco, o corte não atingiu os nervos da mão. Mas terá que ficar algumas semanas sem tocar e a Legião tem gravação à vista — daí o convite a Negrete. O baixista faz dois ensaios com Dado e Bonfá na casa da mãe do guitarrista, na Península dos Ministros. É aprovado.
***
Trecho do livro Renato Russo: O Filho da Revolução (Editora Agir, 2009), de Carlos Marcelo, editor-chefe do Estado de Minas.