Convoque seu Buda, o aguardado terceiro disco solo de Criolo, chegou na hora certa: oito dias depois de o segundo turno das eleições presidenciais rachar o Brasil. Enquanto a intolerância envenenava a rede – com gente pregando impeachment e até a “expulsão” dos nordestinos do país –, o cantor e compositor paulistano fez da internet sua trincheira zen. Disparou gratuitamente 10 novas canções e, na faixa-título, rogou a Buda, Oxalá, Shiva, Ganesh e Zé Pilin um pouco de equilíbrio.
Versos contundentes expõem “sonhos em corrosão” de um fascinante Brasil – complexo, doentiamente desigual, mas também promissor. Nada escapou a Criolo: consumismo, miséria, greves, rolezinhos, violência, Instagram, manifestações de junho de 2013, jovens plugados e a beleza do povo – tá tudo lá. Insiste em apostar no lado bom do mundo e das pessoas, mas ironiza ativismos de sofá e ideologias de ocasião. E avisa, em Esquiva da esgrima: “Quem toma banho de ódio exala o aroma da morte”.
LUXO
As palavras diálogo e construção são repetidas várias vezes por Criolo ao longo de quase uma hora de papo sobre 'Convoque seu Buda'. Contente com a repercussão positiva do novo trabalho, ele diz que não imaginava um retorno tão rápido. Afirma que é “um luxo” o prazer de lançar ao mundo canções feitas solitariamente, “com o coração”. De julho a setembro, foram 10 horas por dia de muita transpiração num estúdio paulistano para construir tanto a sonoridade quanto as canções do álbum. Outro encontro feliz com Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, a dupla que produziu o aclamado 'Nó na orelha' (2011), parece ter convencido Criolo a não desistir de gravar discos e da carreira musical, como chegou a cogitar. “Vou seguindo, enquanto me permitirem continuar nesta tentativa aí”, diz ele, com aquele jeito budista de ser.
Meninos carvoeiros, crianças pedindo no sinal, cracolândia, protestos, Thássia Naves (a blogueira fashion de Uberlândia), ternos Armani, sapatos Louboutin, lei de cotas, o funk ostentação de MC Lon e pão quente em falta no dia da greve de ônibus são metáforas dos brasis de Criolo. Ele chama a atenção para o momento efervescente experimentado pelo país, “com sua juventude extremamente inteligente, cada um com sua história, seus berços e suas verdades”. Citados em 'Cartão de visita', a it girl mineira, Lon e o ator Lázaro Ramos, acredita o músico, dialogam com o Brasil contemporâneo – jovem e complexo.
Aliás, um diálogo transformou Criolo em piada na internet. Durante entrevista ao programa de TV comandado por Lázaro, o rapper fez questionamentos pertinentes sobre os efeitos concretos da tão badalada ascensão da classe C brasileira, mas, em certo momento, “viajou na maionese”. Zoaram a valer com suas frases-cabeça. Dialeticamente, o “bullying” acabou virando verso de 'Cartão de visita': “Lázaro, nos ajude a entender”.
Homem das metáforas, Criolo reconhece: precisa aprender a comunicar mais claramente suas ideias. Empolgado, aponta a energia e o talento “de nossa juventude extremamente criativa”. Chama a atenção para a engenhosa edição de suas imagens e das sonoras do videopiada. Ex-arte-educador, ele se encanta com a sagacidade do autor da zoação virtual. “Milhões de jovens têm essa inteligência, essa energia. O que eles vão fazer com isso é outra história”, diz.
O músico pondera: compreender fenômenos como a ascensão da classe C talvez só seja possível daqui a 30 anos, mas diálogos como o que tentou construir com Lázaro Ramos são tentativas de buscar uma forma menos rasa de lidar com a complexidade do país. “De cinco em cinco minutos vemos pessoas passando fome na rua e tirando comida podre do lixo, embora sejamos um Brasil rico. Exportamos comida”, indigna-se. Aliás, 'Duas de cinco', faixa de 'Convoque seu Buda', é trilha sonora da campanha 'Jovem Negro Vivo', da Anistia Internacional Brasil: 30 mil jovens são assassinados anualmente no país – 77% deles são pretos.
Criolo repete seu verso – “orgulhoso de minha cor, de meu cabelo e do meu nariz” – ao comentar a campanha antinordestinos deflagrada durante a campanha eleitoral. “Isso é absurdo, deprimente. Sou filho do Nordeste. Ceará e Pernambuco dão um banho de cultura neste país”, afirma, orgulhoso das raízes cearenses. O rapper diz que seu palco, “desde sempre”, reverenciou essa riqueza. Em 'Convoque seu Buda', ouvem-se ecos de rabeca e pífanos. Há baião e forró, além de samba e reggae. O rap é o centro de tudo, mas tome candomblé.
Rapper ou cantor? “Sou um MC, uma pessoa que cresceu escrevendo rap em nosso país”, define-se Kleber Gomes, de 39 anos, rimador desde os 13. A quem insiste em colar no hip-hop a pecha de “música do gueto”, ele responde: “Música é música, cada um faz a sua história em seu espaço/tempo”. Diz que o rap, “forte e extremamente criativo desde sempre”, abre-se a novos diálogos – não poderia ser de outra forma num país continental, tão culturalmente multifacetado como o nosso. Durante a entrevista, ele alterna, naturalmente, o paulistês com o sotaque arretado de sua gente do Ceará.
Linha de frente
O filósofo francês Jean-Paul Sartre, o sociólogo e educador suíço Philippe Perrenoud e o pensador alemão Friederich Nietzsche ganham versos em 'Convoque seu Buda'. Ao lado deles estão Férrez, Sabotage, Edi Rock e Black Alien – expoentes da arte da periferia, onde Criolo aprendeu a tecer suas canções. “Nem tudo que brilha é relíquia nem joia”, diz o rapper Mano Brown, outro ídolo, numa das faixas do novo disco. A frase vem de 'Eu sou 157', clássico do Racionais MCs, o grupo de rap mais importante do Brasil.
Colagens são usuais no hip-hop. 'Cálice' (Chico Buarque/Gilberto Gil) ganhou releitura de Criolo elogiada pelo próprio Chico. Um verso de 'Duas de cinco' é drummondiano (“E havia uma pedra/ no meio do caminho/ Ele não é preto velho/ Mas no bolso leva um cachimbo”). Em agosto, o MC foi acusado de copiar, no samba 'Linha de frente', um trecho da melodia de 'Tristeza pé no chão', sucesso da mineira Clara Nunes.
“Isso foi muito triste, uma grande tristeza”, reage ele, sereno, negando enfaticamente o plágio. “Jamais faria isso, mexer com o patrimônio de outro artista.” Criolo diz ter telefonado para o compositor Mamão, que mora em Juiz de Fora. Fez questão de se esclarecer com ele e os dois deram o assunto por encerrado.
Apesar do ti-ti-ti, 'Linha de frente' é motivo de grande alegria. A canção batizou a turnê que Criolo e Milton Nascimento levaram a algumas cidades do país, cuja estreia ocorreu em BH, em junho. Bituca adorou cantar o samba de Criolo. E o convite de Milton para interpretar sozinho 'Morro velho' – tocante retrato do apartheid social brasileiro – até hoje emociona o rapper. “Foi um dos maiores presentes que poderia ganhar da vida. A gente tem mais esperança no mundo quando escuta o Milton cantar”, afirma.
Reverente, Criolo sempre posicionou o pedestal de seu microfone atrás do de Bituca. Levou muitas broncas por isso. “Ele ficava muito bravo”, revela. Mas não teve jeito: obedeceu. É aquela história: quem tá na linha de frente/ não pode amarelar...
NA REDE
Produzido por Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman, o disco 'Convoque seu Buda' (Oloko Records) conta com participações das cantoras Tulipa Ruiz, Juçara Marçal e Verônica Ferriani; do rapper Neto (do grupo Síntese); e dos músicos Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, que assinam arranjos. Money Mark, produtor e colaborador dos Beastie Boys, é outro parceiro da empreitada. O trabalho, lançado também nos EUA e na Europa, foi disponibilizado gratuitamente no site www.criolo.net.
Em BH
Dia 22, Criolo chega a BH para lançar Convoque seu Buda. Ele participa do projeto BH Sarará, das 14h às 22h, no Parque das Mangabeiras. Os ingressos de 2º lote custam R$ 40 (feminino) e R$ 60 (masculino) e estão à venda nas lojas Boundless. Informações: www.fb.com/bhsarara.
Versos contundentes expõem “sonhos em corrosão” de um fascinante Brasil – complexo, doentiamente desigual, mas também promissor. Nada escapou a Criolo: consumismo, miséria, greves, rolezinhos, violência, Instagram, manifestações de junho de 2013, jovens plugados e a beleza do povo – tá tudo lá. Insiste em apostar no lado bom do mundo e das pessoas, mas ironiza ativismos de sofá e ideologias de ocasião. E avisa, em Esquiva da esgrima: “Quem toma banho de ódio exala o aroma da morte”.
LUXO
As palavras diálogo e construção são repetidas várias vezes por Criolo ao longo de quase uma hora de papo sobre 'Convoque seu Buda'. Contente com a repercussão positiva do novo trabalho, ele diz que não imaginava um retorno tão rápido. Afirma que é “um luxo” o prazer de lançar ao mundo canções feitas solitariamente, “com o coração”. De julho a setembro, foram 10 horas por dia de muita transpiração num estúdio paulistano para construir tanto a sonoridade quanto as canções do álbum. Outro encontro feliz com Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, a dupla que produziu o aclamado 'Nó na orelha' (2011), parece ter convencido Criolo a não desistir de gravar discos e da carreira musical, como chegou a cogitar. “Vou seguindo, enquanto me permitirem continuar nesta tentativa aí”, diz ele, com aquele jeito budista de ser.
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Aliás, um diálogo transformou Criolo em piada na internet. Durante entrevista ao programa de TV comandado por Lázaro, o rapper fez questionamentos pertinentes sobre os efeitos concretos da tão badalada ascensão da classe C brasileira, mas, em certo momento, “viajou na maionese”. Zoaram a valer com suas frases-cabeça. Dialeticamente, o “bullying” acabou virando verso de 'Cartão de visita': “Lázaro, nos ajude a entender”.
Homem das metáforas, Criolo reconhece: precisa aprender a comunicar mais claramente suas ideias. Empolgado, aponta a energia e o talento “de nossa juventude extremamente criativa”. Chama a atenção para a engenhosa edição de suas imagens e das sonoras do videopiada. Ex-arte-educador, ele se encanta com a sagacidade do autor da zoação virtual. “Milhões de jovens têm essa inteligência, essa energia. O que eles vão fazer com isso é outra história”, diz.
O músico pondera: compreender fenômenos como a ascensão da classe C talvez só seja possível daqui a 30 anos, mas diálogos como o que tentou construir com Lázaro Ramos são tentativas de buscar uma forma menos rasa de lidar com a complexidade do país. “De cinco em cinco minutos vemos pessoas passando fome na rua e tirando comida podre do lixo, embora sejamos um Brasil rico. Exportamos comida”, indigna-se. Aliás, 'Duas de cinco', faixa de 'Convoque seu Buda', é trilha sonora da campanha 'Jovem Negro Vivo', da Anistia Internacional Brasil: 30 mil jovens são assassinados anualmente no país – 77% deles são pretos.
Criolo repete seu verso – “orgulhoso de minha cor, de meu cabelo e do meu nariz” – ao comentar a campanha antinordestinos deflagrada durante a campanha eleitoral. “Isso é absurdo, deprimente. Sou filho do Nordeste. Ceará e Pernambuco dão um banho de cultura neste país”, afirma, orgulhoso das raízes cearenses. O rapper diz que seu palco, “desde sempre”, reverenciou essa riqueza. Em 'Convoque seu Buda', ouvem-se ecos de rabeca e pífanos. Há baião e forró, além de samba e reggae. O rap é o centro de tudo, mas tome candomblé.
Rapper ou cantor? “Sou um MC, uma pessoa que cresceu escrevendo rap em nosso país”, define-se Kleber Gomes, de 39 anos, rimador desde os 13. A quem insiste em colar no hip-hop a pecha de “música do gueto”, ele responde: “Música é música, cada um faz a sua história em seu espaço/tempo”. Diz que o rap, “forte e extremamente criativo desde sempre”, abre-se a novos diálogos – não poderia ser de outra forma num país continental, tão culturalmente multifacetado como o nosso. Durante a entrevista, ele alterna, naturalmente, o paulistês com o sotaque arretado de sua gente do Ceará.
Linha de frente
O filósofo francês Jean-Paul Sartre, o sociólogo e educador suíço Philippe Perrenoud e o pensador alemão Friederich Nietzsche ganham versos em 'Convoque seu Buda'. Ao lado deles estão Férrez, Sabotage, Edi Rock e Black Alien – expoentes da arte da periferia, onde Criolo aprendeu a tecer suas canções. “Nem tudo que brilha é relíquia nem joia”, diz o rapper Mano Brown, outro ídolo, numa das faixas do novo disco. A frase vem de 'Eu sou 157', clássico do Racionais MCs, o grupo de rap mais importante do Brasil.
Colagens são usuais no hip-hop. 'Cálice' (Chico Buarque/Gilberto Gil) ganhou releitura de Criolo elogiada pelo próprio Chico. Um verso de 'Duas de cinco' é drummondiano (“E havia uma pedra/ no meio do caminho/ Ele não é preto velho/ Mas no bolso leva um cachimbo”). Em agosto, o MC foi acusado de copiar, no samba 'Linha de frente', um trecho da melodia de 'Tristeza pé no chão', sucesso da mineira Clara Nunes.
“Isso foi muito triste, uma grande tristeza”, reage ele, sereno, negando enfaticamente o plágio. “Jamais faria isso, mexer com o patrimônio de outro artista.” Criolo diz ter telefonado para o compositor Mamão, que mora em Juiz de Fora. Fez questão de se esclarecer com ele e os dois deram o assunto por encerrado.
Apesar do ti-ti-ti, 'Linha de frente' é motivo de grande alegria. A canção batizou a turnê que Criolo e Milton Nascimento levaram a algumas cidades do país, cuja estreia ocorreu em BH, em junho. Bituca adorou cantar o samba de Criolo. E o convite de Milton para interpretar sozinho 'Morro velho' – tocante retrato do apartheid social brasileiro – até hoje emociona o rapper. “Foi um dos maiores presentes que poderia ganhar da vida. A gente tem mais esperança no mundo quando escuta o Milton cantar”, afirma.
Reverente, Criolo sempre posicionou o pedestal de seu microfone atrás do de Bituca. Levou muitas broncas por isso. “Ele ficava muito bravo”, revela. Mas não teve jeito: obedeceu. É aquela história: quem tá na linha de frente/ não pode amarelar...
NA REDE
Produzido por Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman, o disco 'Convoque seu Buda' (Oloko Records) conta com participações das cantoras Tulipa Ruiz, Juçara Marçal e Verônica Ferriani; do rapper Neto (do grupo Síntese); e dos músicos Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, que assinam arranjos. Money Mark, produtor e colaborador dos Beastie Boys, é outro parceiro da empreitada. O trabalho, lançado também nos EUA e na Europa, foi disponibilizado gratuitamente no site www.criolo.net.
Em BH
Dia 22, Criolo chega a BH para lançar Convoque seu Buda. Ele participa do projeto BH Sarará, das 14h às 22h, no Parque das Mangabeiras. Os ingressos de 2º lote custam R$ 40 (feminino) e R$ 60 (masculino) e estão à venda nas lojas Boundless. Informações: www.fb.com/bhsarara.