KL Jay comemora o sucesso da turnê especial de “bodas de prata”, iniciada em maio. Na plateia, antigos fãs acompanhados dos filhos têm esbarrado com a garotada ligada nas batidas do hip-hop. “É tudo misturado: preto, pobre, branco e rico”, diz. Há 12 anos o Racionais não lança um disco de inéditas, mas nem por isso deixa de formar público. O novo CD, prometido para este ano, é “segredo de Estado”, avisa o DJ. Há algumas semanas, ele foi mixado no Quad Studios, em Nova York.
Douglas Din nasceu dois anos depois de o Racionais pisar no palco pela primeira vez. O rapper, que mora no Aglomerado da Serra, ficou surpreso ao ser convidado para abrir o show do grupo ao lado da paranaense Karol de Souza, de 24. Ele nunca conversou com Mano Brown e seus companheiros. O convite é importante não só para Din, mas principalmente para a cena hip-hop de BH, que luta para manter ativo o Duelo de MCs. Depois de ser “despejado” do Viaduto de Santa Tereza, em reformas, o evento custou a conseguir a licença da Prefeitura de Belo Horizonte para se instalar na Praça Sete.
“É fantástico o rap sair da favela e da periferia para conquistar a Savassi e os bairros nobres”, diz Douglas Din. Para ele, o fato de o Racionais passar 12 anos sem lançar disco não é problema, mas uma prova de integridade: “CD deles só sai quando está pronto. Se tiver de demorar anos, paciência”. O rapaz não acha que o repertório dos ídolos ficou ultrapassado, nem concorda com a crítica de que o grupo está virando cover de si mesmo. Para ele, 'Fórmula mágica da paz' (1998) e 'Negro drama' (2002) expressam os dramas de sua comunidade. No futuro, ele gostaria de ver o Racionais abordando temas como a espiritualidade.
KL Jay solta uma gargalhada ao ser questionado sobre os 12 anos de “seca fonográfica” imposta aos fãs dos Racionais – o disco, certamente, está entre os mais aguardados do ano. O DJ explica que ninguém cruzou os braços nesses últimos anos, lista os projetos solo dos quatro integrantes, parcerias com grupos como a banda Black Rio e o apoio da “família Racionais” a jovens colegas. Edi Rock lançou em 2013 o ótimo disco solo Contra nós ninguém será; o próprio KL Jay comanda picapes em várias casas paulistanas; e Ice Blue finaliza seu álbum com Helião, vocalista do RZO.
É brega? Mano Brown, o astro do grupo, lançou a “matadora” canção Mulher elétrica e Mente do vilão em parceria com a Black Rio. Compôs Mil faces de um homem leal, vigoroso rap para a trilha de documentário sobre Carlos Marighella, ícone da esquerda nacional. O poeta do gueto, que descreveu com ódio, talento e lirismo as mazelas da periferia, parece feliz em dar adeus à zona de conforto “gangsta”. Em shows solo, tem versado sobre amor e dor de cotovelo, chiquíssimo, de terno e gravata. Na internet, surge sorridente, todo soltinho, improvisando versos românticos em meio a girassóis, carrosséis, princesas, sapos e plebeus, sobre a base criada por Ed Motta. “É brega não, né?”, pergunta o ex-marrento a Ed, sob aplausos da plateia, no Sesc Pinheiros. Será que vem aí o “Roberto Carlos” do hip-hop?
Ouvido absoluto das picapes, KL Jay faz boca de siri sobre o novo trabalho. Diz apenas que a sonoridade se mantém fiel ao legado de James Brown, Tim Maia, Marvin Gaye e Jorge Ben, entre outras incontáveis referências. E haja referência: consta que Mano Brown fez um belo loop do trecho de uma canção de Lô Borges, mas KL desconversa sobre a possibilidade de o material entrar no misterioso CD.
O DJ do Racionais, aliás, adora o “jeito marcante” de Lô cantar. E revela: “Você quer se lembrar do KL? Ele está lá em Caçador de mim”, diz, referindo-se à canção de Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá gravada por Milton Nascimento e pelo 14 Bis.
Mulheres Organizadora da Liga Feminina de MCs, Barbara Sweet, de 28, gostaria de ver o Racionais abordar temáticas diferentes, além do estilo “fight the power” – o protesto que o consagrou. A rapper está convicta de que o grupo surpreenderá em seu novo disco de inéditas. Provocada a enviar um “recado” a Brown, ela sugere letras solidárias às mulheres vítimas do machismo. Abusos no ônibus, no metrô e violência dentro de casa são corriqueiros, sobretudo nas periferias, lembra.
Há alguns anos território de macho, o cenário do rap mudou, moças despontam como MCs e DJs – e andam “surrando” a rapaziada nas batalhas. “Comecei a rimar por causa do Racionais”, conta Sweet, que estreou aos 15 no microfone. Aos 13, chegou a mentir para a mãe para ir a um comício de Lula, na Praça da Estação, só para assistir ao show de Mano Brown e seus companheiros.
KL Jay garante: o melhor do Racionais está por vir. O grupo aderiu às redes sociais, reequacionou a carreira por meio da produtora Boogie Naipe, profissionalizou seu estafe. Se há 25 anos a banda assumiu a linha de frente da luta das periferias, inclusive ajudando a eleger Lula e Dilma Rousseff, agora abre mão de protagonismos. O Brasil mudou, a chamada “classe C” fala por si própria. “A gente criou, entre aspas, esse rótulo (de porta-voz). Naquela época foi necessário, o momento pedia, mas não queremos esse título não. Cada um é o seu próprio líder”, afirma Jay, convicto de que o futuro da banda está intimamente ligado à liberdade, sem se deixar engessar por antigos conceitos ou ideologias.
“A mudança não para”, avisa, dizendo-se adepto da metamorfose ambulante, pois vivemos na era da informação. “Ela o faz enxergar o mundo, perceber a posição que você ocupa nele. Informação é vital, é poder.” Para quem acha que a idade vai amansar “os quatro pretos mais perigosos do Brasil”, KL Jay avisa: “Estamos ainda mais bravos, mas com outra mente”.
Na contramão
Quando surgiu, no finalzinho da década de 1980, o Racionais MCs não se curvou às gravadoras e ao jabá, jamais paparicou a mídia. Sempre aceitou convites vindos de todo o país para conversar com a garotada em escolas e projetos sociais. Deu força à população carcerária, gravou Diário de um detento, tocante relato do massacre do Carandiru, e Homem na estrada, sobre a sina de um ex-presidiário que luta em vão para se reerguer. Toureando a pirataria, vendeu milhares de cópias de seus cinco álbuns independentes gravados entre 1990 e 2002, duas coletâneas e dois álbuns ao vivo. Quando a classe média, satisfeita com a redemocratização do país, trocou a MPB de protesto pelo BRock, coube ao rap expor as feridas do Brasil dos excluídos.
Em busca de sintonia
Clara Lima, de apenas 15 anos, tem brilhado no Duelo de MCs, o mais importante evento de rap de BH. Representante da novíssima geração do hip-hop, a garota que vem derrotando rapazes nas batalhas de rimas conta que uma de suas principais inspirações para encarar o universo das palavras vem do Racionais MCs.
Sexta-feira, quando o grupo subir ao palco do Chevrolet Hall, Clara estará a postos. Quer ouvir A vida é desafio, hit do Racionais. Essa moradora do Bairro Ribeiro de Abreu, que cursa o 9º ano do ensino fundamental na Escola Estadual Margarida de Melo Prado, explica que a letra diz exatamente o que ela sente.
Integrante do coletivo Família de Rua, que promove o Duelo, Pedro Valentim, o PDR, não se surpreende com a força do Racionais junto a adolescentes como Clara. “Sinto que eles estão buscando sintonia com a molecada”, diz Pedro, que tinha 5 anos quando o grupo estreou.
Para PDR, o Racionais enfrenta o desafio de entender o novo momento do hip-hop – pautado, sobretudo, por profundas mudanças tecnológicas e pelo novo perfil da periferia brasileira. Para ele, o repertório de Mano Brown e companheiros não ficou datado, apesar de retratar o Brasil dos anos 1980/1990. Se o país mudou e a classe C se empoderou, preconceito, injustiça social e violência estão presentes no cotidiano do século 21, argumenta Pedro.
É fato: a denúncia social, obrigatória no repertório dos rappers de 20 anos atrás, agora divide espaço com outros temas no repertório dos jovens MCs – inclusive o amor, que tanto tem mobilizado Mano Brown em seu projeto solo. A descriminalização da maconha surge nos versos da nova geração, que se vê protagonista da própria história, sobretudo a partir dos protestos de junho de 2013. Grudada em seus computadores, essa turma busca novas linguagens num contexto em que tudo flui rapidamente.
PDR quer ir ao Chevrolet Hall para ouvir as antigas do Racionais, mas está curioso em relação ao disco de inéditas. “O que mais me instiga é o texto, o que eles vão dizer, a técnica para escrever. Brown tem aprimorado sua métrica e a construção de rimas. Ele põe a molecada inteira no chinelo”, conclui.
Enquanto isso... Pânico na Zona Sul
Nos anos 1990, Misael Avelino dos Santos, coordenador da Rádio Autêntica Favela FM, em BH, teve problemas com a polícia por tocar o rap do Racionais MCs em seus programas. Pânico na Zona Sul, por exemplo, denuncia o extermínio de jovens pretos e favelados por justiceiros e policiais. Sem espaço na mídia, a banda costumava subir a Favela da Serra para apresentar seus discos na então emissora comunitária. Hoje, o radialista compara o Racionais, porta-voz da periferia, à Legião Urbana, porta-voz das angústias do jovem de classe média. Apresentador do programa Uai rap soul, ele se preocupa com o avanço do funk ostentação sobre as “letras conscientes”, cultuando marcas de luxo e glorificando o consumismo. “Voltamos à estaca zero”, lamenta. Para Misael, já passou da hora de Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock apresentarem suas novas rimas ao país.
RACIONAIS MCS
Sexta-feira, no Chevrolet Hall, Avenida Nossa Senhora do Carmo, 230, Savassi, (31) 3209-8989. Abertura: Douglas Din e Karol de Souza. Ingressos/5º lote: R$ 140 (inteira) e R$ 70 (meia-entrada). Menores de 14 e 15 anos só podem entrar acompanhados dos pais ou responsáveis legais. Entrada livre para maiores de 16 anos.