
Certa vez, numa casa noturna em São Paulo, nos anos 1960, Aracy de Almeida (1914-1988) se deparou com duas peruas que falavam sem parar, sentadas a uma mesa próxima do palco. Começou a cantar e as duas, em vez de se calarem para ouvi-la, passaram a falar mais alto. A certa altura, a cantora, já bastante irritada ouviu de uma delas: “Nossa! Como a Aracy está velha”. No ato, parou o show, mandou acender as luzes da casa e tascou: “Eu tô velha, mas sou a Aracy de Almeida. E você quem é, sua f.d.p.?”.
Conta Henrique Cazes em seu livro 'Suíte gargalhadas', que Aracy, cujo centenário de nascimento é lembrado nesta terça-feira, 19, saiu do palco sob aplausos e gargalhadas e voltou meia hora depois para continuar o show com a plateia — já sem as duas peruas — em absoluto silêncio.

Ouça 'A voz do morto' por Aracy de Almeida:
Paulinho da Viola afirmou várias vezes ser ela a maior cantora de sambas. Não por acaso, ficou conhecida como “o samba em pessoa” na era do rádio. Seu legado musical vai além do clichê da grande intérprete e predileta de Noel. Sim, ao lado de Marília Batista, ela deu maior relevo ao cancioneiro dele, mas não vacilou ao abraçar o samba — ela que começou cantando em coros evangélicos, mas também frequentava terreiros de candomblé e gostava de cantar pontos dos orixás sem a menor sombra de preconceito — de outros dos mais importantes compositores, como Custódio Mesquita, Assis Valente, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Cartola, Wilson Batista, e também clássicas marchinhas carnavalescas.
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Araca, que se dizia cheia de “arrastar aquele morto pelo resto da vida”, fazia questão de afirmar que, apesar de alimentar o mito e das incontáveis de canções do amigo, seu maior sucesso foi 'Tenha pena de mim', de Ciro de Sousa e Babaú, lançado em 1937, quando ela integrava o elenco da Rádio Nacional. A voz da morta é moderna, resiste ao tempo, e o melhor de celebrar seu centenário de nascimento é, enfim, reabilitá-la na memória nacional. Silêncio para ouvi-la, por favor.
Relembre participação de Aracy no 'Show de calouros' (SBT):
Para revisitar 'Araca
Quem quiser acompanhar a história de Aracy de Almeida por ocasião de seu centenário tem diversas opções. Ao alcance do computador, a Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, tem programa que conta a história da cantora com roteiro e direção de João Máximo, biógrafo de Noel Rosa.
A cantora Dorina e o conjunto Época de Ouro fazem, na próxima semana, show no Rio em que revisitam o repertório do “Samba em Pessoa”. Dona Inah e Roberto Seresteiro têm feito show semelhante. Porém, a Universal Music, que detém a maior parte das gravações de Aracy, feitas para os selos Elenco, Polydor, Phillips e Odeon não tem planos de relançamentos por ora.
