A ruiva e sardenta Rita Lee Jones sempre chamou a atenção pelo carisma e pela beleza. Na escola, era uma garota brincalhona e travessa, mas ficava séria e focada durante jogos da seleção de handebol, da qual fazia parte — não gostava de perder. Morava em um lar musical, onde o rádio estava sempre ligado e a casa se enchia com a voz de Ângela Maria, Cauby Peixoto e outros cantores de sucesso na década de 1950 em São Paulo. A música ganharia para Rita um sentido quase vital ao longo dos anos.
Mas quem desconfiaria que a garota levada teria talento para instrumentos? A professora de piano, famosa pianista da época, Magdalena Tagliaferro, deu a dica ao pai de Rita, o dentista Charles Jones: “A menina tem talento, mas é muito tímida.” Mal sabia ela, no entanto, que Rita Lee se transformaria na rainha única do rock brasileiro, de voz marcante e suave e de intensa personalidade no palco.
Versátil, Rita Lee sempre mostrou domínio em diversas linguagens da arte ao longo de 50 anos de carreira, comemorados neste ano. Desde performances poéticas e ousadas em shows até a aventura muito bem-sucedida como escritora. Em 2012, a cantora chegou a anunciar aposentadoria, após impecável carreira solo. Mas deixou o pijama de lado para comemorar na estrada as cinco décadas dedicadas à música.
Em entrevista, contou que escrever tem sido a melhor terapia que encontrou desde que foi internada para uma mastectomia — cirurgia de remoção completa da mama que consiste um dos tratamentos para o câncer. “Nada melhor do que cicatrizar em paz tendo um brinquedinho novo nas mãos, quando o Twitter virou um vício eu tratei de me desintoxicar, como fiz com todas as drogas antes navegadas. Um Twitter na mão, uma fiçcão na cabeça, era assim que eu funcionava, quando eu ia ver, já era… A teclinha ‘send’ foi mais rápida. Devo ter escrito umas 200 historinhas, umas boas outras um lixo.”
Sobre o próprio estilo de escrita, Rita classifica como “insanidade gentil” e revela que se empenha em produzir uma autobiografia. “No momento estou viciada em escrever minha biografia, se rolar baixaria, me autoprocesso.” (risos)
Casada com o músico Roberto Carvalho, desde 1976, a cantora experimentou a maternidade e, segundo ela, cumplicidade. “Acho que o sucesso do meu relacionamento com o Roberto pode ser atribuído à cumplicidade no crime de amar até as últimas consequências...” Ao longo da carreira, Rita cantou tabus femininos, como a menstruação, em 'Cor-de-rosa choque', e a menopausa em 'Menopower'. Mas, hoje em dia, ela diz que envelhecer talvez seja o maior tabu feminino, além dos mistérios e das transformações intensas pelas quais as mulheres passam. Transformações que viraram personagens do mundo de Rita, como a 'Mulher Mistério' e a 'Mulher Liquidificador' — figuras que povoam o livro 'Storynhas', lançado no fim do ano passado.
A vaidade quando se tem quase 70 anos de vida se transforma em desapego, segundo ela. “O conjunto da obra até que é bacana, gosto do meu sarcasmo e odeio meu nariz. Estou me desapegando da minha máscara de palco, pensei que fosse difícil, mas está sendo bem engraçado me ver no espelho com cabelo curtinho e branco, rugas e manchas senis, a inevitável decadência física dos meus quase 70 anos é cruel, pero mui digna (risos). Meus dentes são ótimos. Não como cadáver (carne), adoro Coca-Cola e nunca votei no Maluf.”
Literatura
No fim do ano passado a cantora lançou um livro que reúne microtextos publicados em redes sociais. 'Storynhas' teve ilustrações do(a) cartunista Laerte (que assumiu uma personalidade feminina). “Estava na expectativa do livro, sabia que ele estava sendo gerado. O fato é que, quando me colocaram como colaboradora do processo, eu fiquei super emocionada. A Rita é uma referência para mim. Eu li o texto e troquei ideias com ela. Tudo fluiu muito naturalmente. O texto dela é desafiador e generoso do ponto de vista de motivação para ilustração. Adorei fazer. Me senti parceira”, disse Laerte.
De acordo com o cartunista, a escrita de Rita Lee dá abertura para a participação do leitor e é uma porta para o ilustrador soltar a criatividade. “Procurei fazer as ilustrações de forma ativa, seguindo a proposta do texto. Como ela tem uma personagem a Cantora Decadente eu me propôs a fazer histórias que nem estavam no texto.” Laerte diz que Rita representa a expressão de liberdade da arte nas histórias que escreve. “Ela representa a própria expressão da liberdade no rock. O rock também se estabeleceu como uma linguagem livre. O trabalho da Rita apresenta a busca de novas possibilidades, sem se prender a nenhum cânone. Ela sempre se expressou com linguagens das mais diversas.”
A mutante Rita
Ao lado dos irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, Rita Lee escreveu um dos capítulos mais importantes na história da música brasileira, com Os mutantes. “Gosto dos três juntos, do mesmo modo que separados. Adoro a poesia de Arnaldo, a voz de Sérgio e o histrionismo de Rita. Ou seria: a voz de Arnaldo, o histrionismo de Sergio e a poesia de Rita: Ou ainda: o histrionismo de Arnaldo, a poesia de Sérgio e a voz de Rita? É parece impossível destacá-los uns dos outros, quando se pensa neles e um sussurro inconsciente nos confidencia ao pé do ouvido: mutantes”, disse a escritora e compositora Mathilda Kóvak, no prefácio do livro 'A Divina Comédia dos Mutantes', de Carlos Calado.
A ruiva e performática cantora era a leveza e a força do grupo que acabou se desfazendo. Atualmente, os componentes não falam um dos outros. “A Rita foi uma parte da minha vida que passou, ela mesma optou por isso. É igual amplificador digital, prefiro não falar sobre isso”, disse Arnaldo Bapstista, sobre a antiga companheira e ex-esposa.
Arnaldo conta que Os mutantes sempre teve altos e baixos. “Hoje, a gente tenta manter o lado bom. O Sérgio se separou de mim de uma maneira meio drástica, então, estou sozinho. Então, estou em carreira solo, fazendo o melhor que eu consigo nesse sentido. Sou o one man band, porque eu gravo todos os instrumentos.”