O “encontro de almas” começou reverenciando a palavra – esteio da canção e do rap. Oportunamente, surgiu 'A terceira margem do rio', a quase desconhecida parceria de Milton e Caetano Veloso inspirada em Guimarães Rosa. Depois foi a vez de Dorival Caymmi. Bituca parece recitar para chamar o vento, mas seu flerte sutil com o hip-hop, o canto falado, fica por aí. Aos 71 anos, ele não se arrisca a levar o barco para além da zona de conforto da canção.
Trinta e três anos mais jovem, coube a Criolo se atirar – feliz da vida – nas águas miltonianas. Haja coragem, para não dizer zona de risco. O show evidencia que Deus não deu a Kleber Gomes o gogó do parceiro. Muito longe disso. Houve quem se irritasse com suas desafinadas na noite de sexta-feira e com a coreografia meio surtada. Mas o rapaz, que outrora assinava Criolo Doido, encara 'Morro velho', entre outros clássicos do Clube da Esquina. E não se intimida em dividir o palco com a jovem carioca Júlia Vargas, vozeirão respeitável. Guardem o nome dessa moça, convocada por Bituca para repetir com ele um de seus duetos com Sarah Vaughan...
Milton toca a sanfoninha que ganhou da mãe na revigorada 'Ponta de Areia', a veterana 'Travessia' ainda tem o seu lugar, Criolo é mais Criolo quando interpreta o repertório autoral, talhado para o seu gogó. Clássico de Chico Buarque e Gilberto Gil potencializado pela voz “Brasil profundo” de Milton, 'Cálice' não poderia faltar. Essa bela canção inspirou o rap de Criolo gravado pelo próprio Chico. Diz assim: “Afasta de mim a biqueira, pai / Afasta de mim as biate, pai/ Afasta de mim a cocaine, pai/ Pois na quebrada escorre sangue”.
Boa música para montar o repertório do show é que não faltava. E dá-lhe 'Bogotá', de Criolo, e 'Escravos de Jó', de Milton Nascimento e Fernando Brant, as duas devidamente apresentadas em dupla. Para mostrar que o namoro da turma do hip-hop com Bituca não é de hoje, é bom lembrar que a mesma 'Escravos de Jó' já havia sido sampleada recentemente por Marcelo D2.
No sábado, o público aplaudiu, tirou fotos e levou a bandeira de Minas Gerais, devidamente exibida por Criolo. Ainda assim, não se chegou àquela catarse eletrizante que marca os grandes encontros. Ainda há um quê de ensaio geral, um clima de “vamos fazer um som lá em casa” que marcou o início da amizade do rapper com Milton. Estreia é estreia, há muito palco pela frente.
Antes que se imagine um passo decisivo na “linha evolutiva” do tão badalado casamento do rap com a música popular brasileira, é bom lembrar: não houve surpresa. O show se chama 'Milton convida Criolo'. Obra em processo? Talvez. Mas seria bacana ver Bituca se arriscar mais no universo do parceiro mais jovem. 'Linha de frente' provou isso (é aquela música da Turma da Mônica, do Cascão rei do morro chapa-quente). Milton estava para lá de soltinho em 'Mariô'. Pena ter ficado só na vontade ouvi-lo cantar 'Não existe amor em SP'. A “Travessia” de Criolo acabou defendida apenas pelo autor, acompanhado pelos fãs. Mas que merecia um dueto, isso merecia.
Milton Nascimento e Criolo abrem turnê de 'Linha de frente' em BH
Show que tem tudo para amadurecer bem com o tempo. Artistas confessam admiração mútua
Criolo avisou, logo depois de entrar no palco do Palácio das Artes: o que se veria ali não é propriamente um show, mas o “encontro de almas”. O rapper paulistano e Milton Nascimento, astro da MPB, começaram por BH a turnê de 'Linha de frente', com direito a muitos abraços em cena, tietagem e até convite ao público para entoar um mantra para chamar Bituca ao microfone.