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“Não acharia graça nenhuma em fazer um trabalho hermético para seis pessoas que dominam aquele código. Eu quero esses códigos tocando na rádio popular. É para isso que dediquei a minha vida”, revela a cantora.
Adriana Calcanhotto se assume uma artista em constante evolução. “Quando se resolve fazer música no Brasil, é preciso ralar muito. Esses dias, vi o Gilberto Gil dizendo que precisava estudar porque a concorrência era grande. Ele é o mais esperto! Temos que trabalhar, não podemos nos colocar em pedestais”, constata. E ai de quem estiver próximo a ela e reclamar que música brasileira já teve dias melhores. “Nunca compartilhei essa opinião. A efervescência é a mesma e cada vez fica mais difícil fazer música no Brasil. Nosso padrão é muito alto”, finaliza.
Leia a entrevista com Adriana Calcanhotto:
No recém-lançado 'Olhos de onda', há uma mistura de Caetano Veloso, Cid Campos, Tim Maia e Amy Winehouse. Como escolhe seu repertório?
Ouço uma canção que me toca e quero que ela seja minha. Aconteceu com 'Back to black', de Amy Winehouse, uma música que foi gravada com arranjos enormes e cheios. Quando se tira todos os arranjos, ela continua potente, resiste a falta de tudo. É com isso que eu trabalho. É uma coisa insondável. Não fico investigando muito porque posso estragar tudo (risos). Foi o que aconteceu com 'Fico assim sem você', da dupla Claudinho e Bochecha. Essa música tocou no rádio por causa da morte do Claudinho, como uma homenagem a ele, incluindo a rádio que eu costumo escutar. Ouvi e fiquei enlouquecida, não sosseguei enquanto não descobri de quem era e a tirei no violão. Só ouvi uma vez, e foi suficiente. Comprei o disco deles e escutei umas 300 vezes. Até pedi desculpas ao meu motorista pela repetição. É isso que acontece: a canção me leva e eu vou.
Estar no mainstream te incomoda ou te desafia?
O grande desafio é estar no mainstream tentando fazer alguma coisa com conteúdo. Não acharia graça nenhuma fazer um trabalho hermético para seis pessoas que entendem aquilo e dominam aquele código. Eu quero esses códigos tocando na rádio popular. É para isso que dediquei a minha vida. Foi esse despertar que tive via rádio, em Porto Alegre, quando ouvi a voz de Vinícius de Moraes, a Bethânia cantando versos de Clarice Lispector, o Fagner interpretando Ferreira Gullar. Quando entendi que aquilo tinha tanta potência, pensei em fazer com que as pessoas também sentissem o que senti. Dediquei a minha vida a esse casamento entre o popular e o erudito. Não separo o que faço para o grande público das coisas loucas e experimentais. Para mim, é tudo uma coisa só. São canções.
Você tem uma carreira muito consolidada no exterior. Olhando de fora, qual a impressão da música brasileira hoje?
A música popular brasileira é de um nível de qualidade impressionante. A forma como ela se comunica com as pessoas é algo que só acontece aqui. E essa não é uma visão só minha. Fora do Brasil, nomes como Caetano Veloso, Chico Buarque e Bebel Gilberto tem um alcance impressionante. Quando se resolve fazer música no Brasil, é preciso ralar muito. Esses dias, vi o Gilberto Gil dizendo que precisava estudar porque a concorrência era grande. Ele é o mais esperto! Temos que trabalhar, não podemos nos colocar em pedestais. É por isso que ele é quem é, porque não se coloca como superior a ninguém.
Muito se comentou sobre sua lesão no punho, que a impediu de tocar violão. O que aconteceu?
Da noite para o dia, apareceu uma inchaço no meu punho direito, que na verdade era acúmulo de líquido na articulação. Essa “bola” pressionava o nervo e eu não conseguia tocar. Para algumas coisas não doía, para outras, doía bastante. Eu teria que fazer uma operação e, nesse momento, estava mixando 'Micróbio do samba', disco gravado inteiramente no violão. Portanto, a sequência natural seria fazer o show usando esse instrumento. Mas não rolou, então chamei o Davi Moraes para me acompanhar na turnê. No começo, foi sofrido. Mas com isso, tive espaço para tocar secador de cabelo, xícaras, louças e outras coisas curiosas. Me virei, mas foi um desafio. Operei a mão e fiz fisioterapia. Algumas vezes, eu perguntava para o médico: já posso tocar? E ele dizia: Claro… Que não!
Esse processo durou quanto tempo?
Um ano e meio. Quando ele finalmente me liberou para tocar, eu foquei na guitarra elétrica, porque podia dedilhar bem baixinho e puxar a minha memória muscular. Acabada essa fase da guitarra, decidi voltar para o violão. Nessa hora, pensei: será que eu quero voltar a tocar? Tinha essa decisão em minhas mãos, mas me dei ao direito de não continuar, parar de tocar ou inventar outro instrumento se quisesse. Foi um momento de liberdade. Eu pensei até em como seria não tocar nunca mais.
Você chegou a cogitar nunca mais voltar a tocar?
Pensei bem seriamente por uns quatro dias em não tocar mais violão. No quarto, chegou o convite da Culturgest (organização cultural em Lisboa) para fazer um show lá, comemorando os seus 20 anos. A sala tem uma acústica maravilhosa, e pensei que se fosse parar, não seria agora, mas depois de Lisboa. Achei bacana ter uma meta, porque ficar treinando só por treinar é uma coisa, outra é ter uma data e estar com um show pronto, com as canções que as pessoas querem ouvir, os sucessos, e como chegaria lá sem lembrar, por exemplo, como tocar 'Esquadros'? Foi bom porque eu não teria disciplina se não tivesse essa meta. Fui fazendo isso e compus 'Olhos de onda', dei esse nome ao show. Foi a primeira canção pós tudo isso que aconteceu comigo, porque ela aponta para a frente. Claro que toco músicas do passado, mas estou de olho na próxima safra, no quem vem por aí. É um disco de transição.
Muita gente conhece a Adriana Calcanhotto intérprete. Mas como é seu processo de composição, você precisa, por exemplo, do violão para escrever uma música?
Essa era uma hora em que eu teria que inventar uma nova maneira de compor, se eu tivesse escolhido não tocar mais. Na caixa de fósforos ou em um teclado, eu teria que inventar; seria legal. Mas, ao mesmo tempo, eu gosto do violão. Embora eu fique entre idas e vindas, brigo com ele e ele comigo. No saldo final, nossa relação é positiva. É um privilégio viajar o mundo tocando violão. E claro, tocando as canções, acabei compondo para o CD 'Olhos de onda', e continuo escrevendo! Mas poderia, sim, compor de outro jeito. Por enquanto, me mantive fiel ao instrumento. Aliás, comprei um violão de sete cordas para complicar um pouco minha vida, sair da zona de conforto. Tenho pouca coisa para fazer e coloquei mais uma corda para me atrapalhar um pouco (risos).
Apesar de ter uma presença forte no palco, você é de uma delicadeza enorme. Você tem ciência disso, domina sua personalidade, ou é algo bem orgânico?
Eu sou assim. Quem não gosta, troque de canal ou compre discos de outra pessoa. Eu só sei ser assim… (risos).
Porque essa relação com o mar?
É algo profundo e só se aprofunda. Os livros sobre o mar, a poesia portuguesa dedicada a ele, quanto mais investigo e procuro coisas sobre o mar, mais interessada e tocada eu fico. É uma relação que extrapola a veia artística, e utilizo meu trabalho como uma forma de extravasar isso. É anterior minhas escolhas como intérprete e compositora.
Como é sua rotina para além dos palcos?
Praticamente não existe (risos). Estou em plena turnê e quando saio, me preparo para a guerra. A vida na estrada é bem puxada. Depois de não ter conseguido comer, não ter dormido, escolher entre dormir ou tomar banho, fico pensando: porquê estou fazendo isso comigo mesma? É uma loucura. Aí me lembro: é o show, o público. Porque a hora do show, o encontro com o público, compensa todo aquele sofrimento.
O que leva em conta na hora de escolher parceiros, como Arnaldo Antunes, que escreveu com você a música 'Para lá'?
É de maneira bem natural. Não fazemos sempre, mas vez ou outra nos reunimos e fazemos um amigo oculto de compositores, organizado pela Marisa Monte. Eu levo um pedaço de letra, outra pessoa um refrão, e outra uma melodia. E aí, sorteia-se os nomes. É uma parceria do acaso. A Marisa me convidou e eu não tinha nada pronto, não tenho um baú de composições. Tinha uma melodia gravada em um CD e levei. No sorteio, eu tirei o Dad e ele me tirou. Os dois tinham melodias. Aí, fui embora. O Arnaldo e a Marisa ficaram com a melodia na cabeça. Passou um tempão, eu esquecida desse assunto, estava me preparando quando alguém me disse que Arnaldo estava em um show meu. Ele me disse que tinha pego aquela melodia, colocado uma letra, chegamos no camarim e estava lá a música! Acho legal essa ideia da Marisa, podem sair parcerias bem malucas. É uma maneira inusitada, para dizer o mínimo, de nascerem canções.
Como é lançar um disco em um ano tão emblemático para o Brasil quanto 2014, com Copa do Mundo e eleições?
Quando a gente pensa dessa forma antes de lançar o disco, nem fazemos. São anos muito difíceis, há mudanças por vir, fica um clima muito diferente. Mas, quando afastamos a lente, ninguém sabe o que vai acontecer. A turnê está na estrada, resolvi registrar o DVD no Rio de Janeiro, no entanto, já passei por várias cidades, Portugal, Inglaterra… Continuo na estrada. O que vai mudar é que o show não tinha o registro que agora tem. A turnê se encerra em fevereiro de 2015, em Lisboa, na fundação Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal. É ali que vou fechar o ciclo, onde tudo começou.
Em setembro você sai em turnê pela Europa. Como se sente em representar a cultura do país no exterior?
O Augusto de Campos fez uma apresentação comigo na Bélgica. Tenho essa outra banda, eu, ele e o Cid Campos. Ele me disse como é chato viajar para for a hoje em dia, porque a gente quer exercitar outra língua, e todo mundo só quer falar português. O interesse pelo Brasil está muito diferente de quando comecei a viajar, o nível de informação que as pessoas tem sobre nós é bem maior. Quando chego em Lisboa, por exemplo, todo mundo sabe o que está acontecendo por aqui. Estamos muito mais observados do que imaginamos.