No meio da tarde, há pouco mais de um mês, Jair Rodrigues, de 75 anos, atende ao telefone: “Salve, gente boa!”, saudava o cantor. Estava alegre por divulgar aquele que seria seu último álbum, o duplo Samba mesmo. Parece até que sua morte, na manhã de ontem, em sua casa em Cotia, na Grande São Paulo, era de alguma forma pressentida: os dois discos reúnem exclusivamente músicas que ele nunca havia gravado, apesar de sempre cantá-las em shows e entre amigos. Aliás, interpreta uma delas com os filhos, Jair Oliveira e Luciana Melo.
Noel Rosa, Martinho da Vila, Cartola, Waldick Soriano, Lamartine Babo, Ary Barroso, entrou de tudo um pouco no derradeiro repertório, bem ao estilo do cantor, que circulou livre pela MPB ao longo de sua produtiva carreira. Com sua voz potente e jeito absolutamente alegre, emprestou sua voz cheia de personalidade a vários sucessos, desde cedo cativando público e parceiros, como a cantora Elis Regina, com quem gravou discos e apresentou o programa de TV O fino da bossa, em 1965.
A essa altura, o artista foi alçado definitivamente ao posto de estrela, embora já viesse lançando discos e fazendo um bom barulho antes. Melhor exemplo disso é sua gravação de Deixa isso pra lá (Alberto Paz e Edson Menezes). A maneira “falada” com que a letra era interpretada e os movimentos que fazia com as mãos não apenas tornaram a canção muito popular em sua voz, como também fizeram com que fosse considerada por muitos, mais tarde, espécie de precursora do rap nacional.
Jair Rodrigues, com sua figura carismática, percebeu desde cedo o potencial da televisão. Além do programa com Elis Regina, que exibia química perfeita entre os artistas, suas aparições em outras atrações eram sempre espontâneas e fugiam ao padrão excessivamente engessado do novo meio, ainda em busca de uma linguagem própria. Jair evoluiu com a TV e ajudou o veículo a se entender com a área de shows e espetáculos. Sua postura simpática fez dele um dos intérpretes mais destacados da era dos festivais da canção.
Com a Pimentinha, sua carreira deslanchou. Ao lado de Elis, gravou três volumes para a série Dois na bossa – no primeiro, lançado em 1965, cantaram músicas como Arrastão, Menino das laranjas e um pot-pourri recheado com composições como O morro não tem vez, O sol nascerá e A voz do morro. O disco chegaria à marca extraordinária de 1 milhão de cópias vendidas. Um ano depois, ao defender Disparada (Geraldo Vandré e Théo de Barros) no 2º Festival de Música Popular Brasileira, dividiu o primeiro lugar com Nara Leão, que cantou A banda (Chico Buarque).
Disparada
A antológica interpretação para Disparada fez da composição um de seus grandes sucessos. Pelo fato de Rodrigues sempre ter cantado sambas, os versos sertanejos (e de protesto) chamaram a atenção do público e abriram caminho para que ele ampliasse seu repertório naquela direção. Não por acaso, cantou tremendos sucessos caipiras, como A majestade, o sabiá, de Roberta Miranda. Em 1991, chegou a lançar Lamento sertanejo, disco só com composições do gênero, incluindo outra de Roberta, Caminhos.
O cantor também contribuiu significativamente para estabelecer conexão entre o samba e a MPB, ajudando a aproximar intérpretes e compositores das duas “praias” e alinhando tudo com sua interpretação personalíssima. Seu trânsito entre os sambistas continuou desimpedido e em 1971 ele gravou outro de seus maiores sucessos, Festa para um rei negro (no disco homônimo), samba-enredo da escola de samba carioca Acadêmicos do Salgueiro. Quem nunca ouviu “Ô lê lê, ô lá lá / pega no ganzê / pega no ganzá”?
O garoto nascido em 1939 em Igarapava, no interior paulista, começou cantando na igreja, trabalhou como engraxate, mecânico, servente de pedreiro e ajudante de alfaiate. Agora, despede-se dos fãs que conquistou pelo Brasil e em turnês internacionais, deixando farta discografia (são mais de 40 títulos) e a certeza de que o samba continua a sorrir. Jair Rodrigues deixa a mulher, Clodine, dois filhos (Jairzinho e Luciana Mello) e quatro netos.
Despedida
Com 26 canções que Jair Rodrigues nunca havia gravado em 55 anos de carreira, os dois discos que compõem Samba mesmo são uma despedida e tanto do veterano da MPB. A ideia de ter somente músicas que ele nunca havia gravado veio do filho, que ele gentilmente chama de “grande mestre” no encarte do CD. A primeira vez em que trabalharam juntos foi em 1999, quando Oliveira produziu e dirigiu o álbum 500 anos de folia, gravado ao vivo e com participação de orquestra.
Mesmo que nunca tivessem sido gravadas antes pelo cantor, as músicas escolhidas são velhas conhecidas do público. Fita amarela, Na cadência do samba, Luz negra, No rancho fundo, É, De volta pro aconchego, Volta por cima, Trem das onze, A noite do meu bem e O mundo é um moinho são algumas delas. Só com violão, cavaquinho, sopros e percussão (sem baixo, bateria nem teclado), os álbuns tiveram participação de nomes de peso da cena instrumental, como Swami Jr. (violão) e Nailor Proveta (sopros).
Em março, em entrevista ao Estado de Minas, o cantor contou que estava feliz e ansioso para ir para a estrada fazer os shows de Samba mesmo, ainda que “reduzindo a marcha”. “O público não verá o Jair que pula e planta bananeira. Mesmo os sambões, fiz em formato bem mais tranquilo.”
No caminho do pai
Os dois filhos de Rodrigues, Jair Oliveira e Luciana Mello, cedo deram os primeiros passos na cena musical. Ambos integraram o grupo Turma do Balão Mágico, nos anos 1980. Oliveira foi estudar música nos Estados Unidos e tornou-se produtor experiente, tendo lançado vários álbuns solo. Praticamente junto com o pai, lançou este ano Jair Oliveira 30, DVD ao vivo com o qual comemora três décadas de carreira compromissada com a música brasileira.
Já Luciana fez sua estreia solo aos 16 anos, com o disco Luciana Rodrigues. O segundo trabalho, Assim que se faz (2000), com o irmão como produtor musical, foi um dos seus mais bem-sucedidos, tendo a faixa-título como música de trabalho – a parceria com Oliveira continua ainda hoje. Com seu pop brasileiro e cheio de balanço, a artista também emplacou sua voz em filmes e novelas.
Parceiro da Trama
A gravadora Trama, que entre as décadas de 1990 e 2000 investiu num grupo de músicos então em início de carreira – a chamada geração Trama, de nomes como Otto, Max de Castro, Fernanda Porto e Rappin’ Hood –, também trabalhou ativamente com Jair Rodrigues. O cantor, sempre aberto à renovação, se deu bem com a turma, da qual faziam parte seus filhos Jair e Luciana. Pelo selo foram lançados alguns álbuns ao vivo, como 500 anos de folia – volumes 1 e 2, e o DVD do programa Ensaio, gravado em 1991 na TV Cultura.
Foi o filho quem produziu, por exemplo, Intérprete (2002), disco que terminou com um jejum de quatro anos sem lançar um disco de estúdio. Neste álbum, regravou pérolas da música brasileira dos autores Noca da Portela, João Bosco, Aldir Blanc, Gonzaguinha, Edu Lobo e Vinicius de Moraes, todas então inéditas em sua voz. E ainda gravou com Lobão e Wilson Simoninha, bem como com os filhos. Até o fim da gravadora – a Trama atua hoje principalmente como estúdio –, Jair ainda lançou álbuns como A nova bossa (2004) e Em branco e preto (2008).
Noel Rosa, Martinho da Vila, Cartola, Waldick Soriano, Lamartine Babo, Ary Barroso, entrou de tudo um pouco no derradeiro repertório, bem ao estilo do cantor, que circulou livre pela MPB ao longo de sua produtiva carreira. Com sua voz potente e jeito absolutamente alegre, emprestou sua voz cheia de personalidade a vários sucessos, desde cedo cativando público e parceiros, como a cantora Elis Regina, com quem gravou discos e apresentou o programa de TV O fino da bossa, em 1965.
A essa altura, o artista foi alçado definitivamente ao posto de estrela, embora já viesse lançando discos e fazendo um bom barulho antes. Melhor exemplo disso é sua gravação de Deixa isso pra lá (Alberto Paz e Edson Menezes). A maneira “falada” com que a letra era interpretada e os movimentos que fazia com as mãos não apenas tornaram a canção muito popular em sua voz, como também fizeram com que fosse considerada por muitos, mais tarde, espécie de precursora do rap nacional.
Jair Rodrigues, com sua figura carismática, percebeu desde cedo o potencial da televisão. Além do programa com Elis Regina, que exibia química perfeita entre os artistas, suas aparições em outras atrações eram sempre espontâneas e fugiam ao padrão excessivamente engessado do novo meio, ainda em busca de uma linguagem própria. Jair evoluiu com a TV e ajudou o veículo a se entender com a área de shows e espetáculos. Sua postura simpática fez dele um dos intérpretes mais destacados da era dos festivais da canção.
Com a Pimentinha, sua carreira deslanchou. Ao lado de Elis, gravou três volumes para a série Dois na bossa – no primeiro, lançado em 1965, cantaram músicas como Arrastão, Menino das laranjas e um pot-pourri recheado com composições como O morro não tem vez, O sol nascerá e A voz do morro. O disco chegaria à marca extraordinária de 1 milhão de cópias vendidas. Um ano depois, ao defender Disparada (Geraldo Vandré e Théo de Barros) no 2º Festival de Música Popular Brasileira, dividiu o primeiro lugar com Nara Leão, que cantou A banda (Chico Buarque).
Disparada
A antológica interpretação para Disparada fez da composição um de seus grandes sucessos. Pelo fato de Rodrigues sempre ter cantado sambas, os versos sertanejos (e de protesto) chamaram a atenção do público e abriram caminho para que ele ampliasse seu repertório naquela direção. Não por acaso, cantou tremendos sucessos caipiras, como A majestade, o sabiá, de Roberta Miranda. Em 1991, chegou a lançar Lamento sertanejo, disco só com composições do gênero, incluindo outra de Roberta, Caminhos.
O cantor também contribuiu significativamente para estabelecer conexão entre o samba e a MPB, ajudando a aproximar intérpretes e compositores das duas “praias” e alinhando tudo com sua interpretação personalíssima. Seu trânsito entre os sambistas continuou desimpedido e em 1971 ele gravou outro de seus maiores sucessos, Festa para um rei negro (no disco homônimo), samba-enredo da escola de samba carioca Acadêmicos do Salgueiro. Quem nunca ouviu “Ô lê lê, ô lá lá / pega no ganzê / pega no ganzá”?
O garoto nascido em 1939 em Igarapava, no interior paulista, começou cantando na igreja, trabalhou como engraxate, mecânico, servente de pedreiro e ajudante de alfaiate. Agora, despede-se dos fãs que conquistou pelo Brasil e em turnês internacionais, deixando farta discografia (são mais de 40 títulos) e a certeza de que o samba continua a sorrir. Jair Rodrigues deixa a mulher, Clodine, dois filhos (Jairzinho e Luciana Mello) e quatro netos.
Despedida
Com 26 canções que Jair Rodrigues nunca havia gravado em 55 anos de carreira, os dois discos que compõem Samba mesmo são uma despedida e tanto do veterano da MPB. A ideia de ter somente músicas que ele nunca havia gravado veio do filho, que ele gentilmente chama de “grande mestre” no encarte do CD. A primeira vez em que trabalharam juntos foi em 1999, quando Oliveira produziu e dirigiu o álbum 500 anos de folia, gravado ao vivo e com participação de orquestra.
Mesmo que nunca tivessem sido gravadas antes pelo cantor, as músicas escolhidas são velhas conhecidas do público. Fita amarela, Na cadência do samba, Luz negra, No rancho fundo, É, De volta pro aconchego, Volta por cima, Trem das onze, A noite do meu bem e O mundo é um moinho são algumas delas. Só com violão, cavaquinho, sopros e percussão (sem baixo, bateria nem teclado), os álbuns tiveram participação de nomes de peso da cena instrumental, como Swami Jr. (violão) e Nailor Proveta (sopros).
Em março, em entrevista ao Estado de Minas, o cantor contou que estava feliz e ansioso para ir para a estrada fazer os shows de Samba mesmo, ainda que “reduzindo a marcha”. “O público não verá o Jair que pula e planta bananeira. Mesmo os sambões, fiz em formato bem mais tranquilo.”
No caminho do pai
Os dois filhos de Rodrigues, Jair Oliveira e Luciana Mello, cedo deram os primeiros passos na cena musical. Ambos integraram o grupo Turma do Balão Mágico, nos anos 1980. Oliveira foi estudar música nos Estados Unidos e tornou-se produtor experiente, tendo lançado vários álbuns solo. Praticamente junto com o pai, lançou este ano Jair Oliveira 30, DVD ao vivo com o qual comemora três décadas de carreira compromissada com a música brasileira.
Já Luciana fez sua estreia solo aos 16 anos, com o disco Luciana Rodrigues. O segundo trabalho, Assim que se faz (2000), com o irmão como produtor musical, foi um dos seus mais bem-sucedidos, tendo a faixa-título como música de trabalho – a parceria com Oliveira continua ainda hoje. Com seu pop brasileiro e cheio de balanço, a artista também emplacou sua voz em filmes e novelas.
Parceiro da Trama
A gravadora Trama, que entre as décadas de 1990 e 2000 investiu num grupo de músicos então em início de carreira – a chamada geração Trama, de nomes como Otto, Max de Castro, Fernanda Porto e Rappin’ Hood –, também trabalhou ativamente com Jair Rodrigues. O cantor, sempre aberto à renovação, se deu bem com a turma, da qual faziam parte seus filhos Jair e Luciana. Pelo selo foram lançados alguns álbuns ao vivo, como 500 anos de folia – volumes 1 e 2, e o DVD do programa Ensaio, gravado em 1991 na TV Cultura.
Foi o filho quem produziu, por exemplo, Intérprete (2002), disco que terminou com um jejum de quatro anos sem lançar um disco de estúdio. Neste álbum, regravou pérolas da música brasileira dos autores Noca da Portela, João Bosco, Aldir Blanc, Gonzaguinha, Edu Lobo e Vinicius de Moraes, todas então inéditas em sua voz. E ainda gravou com Lobão e Wilson Simoninha, bem como com os filhos. Até o fim da gravadora – a Trama atua hoje principalmente como estúdio –, Jair ainda lançou álbuns como A nova bossa (2004) e Em branco e preto (2008).