Entre 2007 e 2010, Digão e Canisso, dos Raimundos, acumularam funções. Sem escritório ou equipe, baixaram o cachê e resolveram ganhar na quantidade. O vocalista passou a marcar os shows, o baixista se tornou produtor de estrada. Tocaram em todo tipo de buraco no que passaram a chamar “turnê motel”. Para receber, os dois remanescentes da formação inicial da banda brasiliense ainda tinham que encarar outros papéis: o “cana bom” e o “cana mau”. Digão era o gente boa, Canisso, o que fazia cara feia na hora de receber cachê. “Vinha gente falando que não tinha ido quase ninguém, então não iriam pagar. Eu dizia: ‘Então não tem show, vou levar todo mundo embora’”, relembra Canisso. Ainda que (quase) na base da força, a banda não chegou a receber um cano. “Só umas canseiras.”
Ficaram também cansados de estar à deriva. Tanto que, nos últimos anos, começaram a ensaiar uma volta por cima, que agora se concretiza com Cantigas de roda, seu oitavo álbum de estúdio e primeiro de inéditas em 12 anos. Cientes das dificuldades, utilizaram o meio 2.0 para conseguir recursos para a empreitada: crowdfunding. Bateram, em uma semana, os recordes da “vaquinha” virtual no país, pois arrecadaram R$ 122,7 mil, mais do que o dobro do pedido (R$ 55 mil no site Catarse). “Nem nas previsões mais otimistas prevíamos isso”, comenta Canisso. Os fãs que bancaram a empreitada já receberam a maior parte da contrapartida: incluindo shows, e a liberação antecipada do álbum virtual.
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Nas 12 faixas, há hardcore (Rafael, Descendo na banguela); punk rock (Baculejo, claramente influenciada pelos Ramones, banda que também é referência na power balad Cera quente); forró-core (Gato da Rosinha, do cantor e sanfoneiro pernambucano Zenilton); dub (Dubmundos). Aquele humor desbocado, cheio de palavrões, alguma baixaria e certa misoginia continua ativo apesar dos tempos politicamente corretos. “Tirei sua blusa devagar/ Abri o seu botão (me lembrou então)/ A Playboy da Claudia Ohana”, são versos de Cera quente. Cantam até as agruras passadas em tempos não tão distantes assim: “O cachê é um insulto, deixa todo mundo puto/ Mas eu vou dando risada esmerilhando esse motor”, diz o hardcore Nó suíno, a preferida de Canisso.
Do punk ao forró-core
No virada da década de 1980 para a de 1990, Rodolfo, Canisso, Digão e Fred já eram amigos em Brasília. Dos quatro, somente Digão tinha uma banda, Filhos de Menguele, que só ensaiava nos fins de semana num quartinho na casa de seu pai, no Lago Sul. “A gente era amigo sem ter nada para fazer... Sabe como é, ficávamos assistindo às nuvens fazerem evoluções no céu”, conta Canisso, metaforizando sobre as tardes enfumaçadas no Planalto Central. Não demorou para que pegassem os instrumentos. Mesmo sem saber muito como tocar, começaram a emendar um Dead Kennedys aqui, um Ramones ali.
Foi nesse mesmo quartinho que Raimundos, o álbum de estreia (1994), foi gerado. Disco que se tornou um dos símbolos da geração 90 do rock brasileiro, trazia músicas que viraram hinos de uma banda descompromissada e que gerou uma série de filhotes depois. Puteiro em João Pessoa, Nega Jurema, Selim, rápidas, sujas e originais, traduziram o espírito do forró-core que marcou a primeira fase da banda. “Eram as bandas que cantavam em português, porque, até então, achavam que a métrica da língua não funcionava para o rock, ainda mais com um tempero brasileiro.”
Pois foi nesse mesmo quartinho de quatro metros quadrados que o Raimundos de hoje gerou Cantigas de roda. No meio do caminho apareceu a figura de Billy Graziadei, vocalista e guitarrista da banda norte-americana Biohazard, que topou a empreitada e assumiu a produção do álbum. Para tal, sugeriu o crowdfunding, já que a banda teria que viajar para os EUA. Aos 45 minutos do segundo tempo, Canisso não conseguiu que seu visto fosse renovado, então foi o único que gravou no Brasil. “Coloque-se no meu lugar, não podia ficar relaxado. Tinha só cinco dias para gravar e acabei fazendo em dois.”
Aos 48 anos, ele admite que começar de novo dá um gás a mais. “Crescemos como músicos e como pessoas.” Além de Digão e de Canisso (que chegou a ficar cinco anos fora da banda), o grupo se completa com Marquim (guitarra) e Caio (bateria). O passado, ele acha melhor deixar lá atrás. “O Fred (baterista original) saiu quando eu voltei (em 2003). Foi cuidar dos assuntos dele, não se interessa mais pela banda. Mas quando o Caio não pôde, ele já tocou no lugar dele. Houve duas oportunidades em que o Fred foi sub dele mesmo.” O grande trauma, a saída de Rodolfo (que em 2001 tornou-se evangélico e abandonou a banda alegando que sua conversão era incompatível com o estilo de vida dos Raimundos), é hoje relativizada. “Outro dia nos encontramos en passant no aeroporto e paramos parar tirar uma foto. Não tenho mais mágoa, mas na hora ficamos sem chão”, finaliza Canisso.