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Alceu Valença reage à indagação sobre demora para fazer o disco de carnaval, algo tão próximo de seu universo. “Para mim o tempo não existe, passado, presente, futuro é ao mesmo tempo”, afirma. Depois justifica: por ter participado de todos os discos do projeto Asas da América, concebido por Carlos Fernando, com artistas os mais diversos cantando canções do carnaval pernambucano, achava que trabalho assim iria se chocar com o projeto do parceiro recém-falecido e homenageado no disco. Reouvindo as gravações, realizadas em Portugal, observando relações entre o Recife antigo e Lisboa – “vi semelhanças entre o frevo dos blocos e o fado” –, reconsiderou. Gravou, inclusive, clipe da música O homem da meia-noite na capital portuguesa.
“'Amigo da arte' traz o lirismo e a loucura do carnaval pernambucano. É panorama de uma festa que não tem nada a ver com a da Bahia. O sotaque é outro”, explica Alceu, estabelecendo ainda diferenças com a folia carioca. E se esparrama de afeto pela diversidade de manifestações do Recife, pela variedade de frevos, blocos malucos que cruzam as ruas, pela poesia portuguesa “na língua do povo”. “Na minha terra os poetas populares são eruditos”, defende. E tira o chapéu para o compositor Capiba. “É o meu imaginário que bate no imaginário do povo brasileiro. E lá existem raízes lusitanas, indígenas, negras. Nossa alma é alma, não soul”, afirma.
“Ser amigo da arte é gostar da arte e não ser simplesmente um boneco da indústria do entretenimento. A pessoa precisa saber que um jingle tem uma loja por trás, é pensado, é matemático, feito a partir de um briefing. Arte, para mim, existe na canção que sai do coração para a boca. Me interessa o que é arte verdadeira”, afirma Alceu Valença. Menino nascido no “sertão profundo”, traz na lembrança o encanto que sentiu ao ver variados tipos de blocos passarem diante da porta da casa dele, na Rua Palmares, ao se mudar para o Recife com 10 anos. Cultivou na juventude o hábito de passar o carnaval em Pernambuco, não só vendo os grupos da capital, mas também visitando cidades próximas, onde pôde ver e ouvir caboclinhos e maracatus e outros grupos.
O entusiasmo com o “carnaval atemporal” de Olinda, onde se pode ouvir ainda hoje a música dos anos 1920 e frevos do século 19, vem junto com constatação dolorida: “Tudo isso está ameaçado. Só se ouve o batidão, o bate-estaca. Embolada virou rap, samba-canção se tornou balada. Onde está o frevo? E o maracatu? Universal é só o que vem da América do Norte?”, indaga. “Temos carnaval sofisticado, que ninguém conhece. Vivemos sob ditadura da mídia que toca um gênero só, o do Rio de Janeiro”, afirma indignado. “Não estou entrando na questão da qualidade ou dizendo que a música de Pernambuco é melhor, mas cada lugar tem o direito a seu carnaval. Precisamos voltar para nossas raízes ”, afirma o cantor e compositor, criticando o que chama de “glamourização do lixo cultural”.
Catarse
“Não nego as minhas raízes, crio a partir delas algo original. É por fazer isso que sou Alceu Valença, não Bob Marley, nem Paul McCartney ou Mick Jagger”, afirma o pernambucano. O artista têm 68 anos e nasceu em São Bento do Una, interior de Pernambuco, mas frisa que ama outras três cidades: Olinda, Rio de Janeiro e Paris. Formado em direito, em 1969, desistiu das carreiras de advogado e jornalista para se dedicar à música. “Vivi cercado de artistas verdadeiros, por isso decidi fazer arte. Meu pai não queria que eu me dedicasse à música, mas não obedecia. Não obedeço a ninguém até hoje. Faço o que quero”, garante.
CONVITE
A capa do disco 'Amigo da arte' reproduz convite de casamento de Alceu Valença com Yanê Montenegro, desenhado pela pintora Marisa Lacerda. A imagem sinaliza diálogo do novo trabalho com o disco 'Maracatus, batuques e ladeiras' (1994), que também tem capa com desenho da artista.
Três perguntas para...
Alceu Valença, músico
O carnaval é parte da sua formação musical?
Ele é uma das referências da minha música. Tudo meu é pessoal, porque é vivenciado. Tenho o Nordeste profundo, o sertão profundo, caminho de Pernambuco a Minas pela margem esquerda do São Francisco, onde se estabeleceu a civilização do couro. Sei cantigas medievais, aboios dos vaqueiros. Quando fui para o Recife, morei na Rua dos Palmares, onde, durante o carnaval, passavam todas as manifestações. O que ouvi foi o frevo de orquestra, as pessoas cantando em coro, carnaval em que não se fazia muita bagunça. A diversidade do carnaval pernambucano se fundiu à minha personalidade, que também é assim.
Qual é a alma do carnaval?
A alegria que passa em quatro dias, uma alegria passageira. Como o ser humano é alegre e nostálgico, isso se reflete nas músicas. É como diz a música de Luiz Bandeira: “Ó quarta-feira ingrata/ chega tão depressa/só pra contrariar/ quem é de fato/ um bom pernambucano/ que espera um ano/ e se mete na brincadeira/ esquece tudo quando cai no frevo/ e no melhor da festa chega a quarta-feira”. O carnaval traz momentos lúdicos, mágicos. Você pode fantasiar, pode ficar bêbado, fazer merda. É ótimo.
Onde você passa os dias de folia?
Em Pernambuco: Olinda e cidades próximas. Tudo que está no disco 'Amigo da arte' tem nas ruas de Recife: frevo de canção, de bloco, de orquestra; afoxé; ciranda; maracatu rural e baque virado. À noite, o Marco Zero é um grande quartel-general do frevo, especialmente bom, porque não tem arma, tudo é só brincadeira. É o meu carnaval. Sou dos que acham que não tem essa história de um carnaval ser melhor do que o outro. O do Rio é o do Rio e o de Olinda o de Olinda. Ouro Preto tem um carnaval maravilhoso, que tem de ser cultuado. Cada um tem o seu jeito e o direito de ser o que é.
Palavra de especialista
Rodrigo Toffolo - Regente da Orquestra Ouro Preto
Existe na música de Alceu Valença um sentimento de brasilidade forte. E quando dizemos Brasil é preciso lembrar que se trata de país grande, com diversas formas de falar, comer, viver, vestir. Alceu é daqueles artistas que passam sentido de nação, que fazem a pessoa se sentir brasileiro ao ter contato com sua arte. São composições benfeitas, bem pensadas e desafiadoras, mas que soam simples, que falam diretamente a nós. E conseguir soar simples é o segredo da boa música e das grandes figuras. (Em maio será lançado o DVD 'Valencianas', com Alceu Valença e Orquestra Ouro Preto.)