Cantor e compositor Alceu Valença lança o disco 'Amigo da arte'

Novo trabalho traz repertório dedicado às diferentes manifestações do carnaval pernambucano

por Walter Sebastião 17/02/2014 07:00

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Íris Zanetti / Divulgação
Para Alceu Valença é preciso defender as raízes do carnaval para evitar a pasteurização e a "glamourização do lixo cultural" (foto: Íris Zanetti / Divulgação)
Está disponível apenas para compra digital disco muito especial: 'Amigo da arte' (Deck Discos), que traz as músicas de carnaval de Alceu Valença. O mais famoso folião do carnaval pernambucano não economizou verve, boa música e poesia. É CD 100% Alceu Valença. Tem frevos antológicos, mas também apaixonada defesa da cultura popular do Brasil, enfatizando as muitas músicas carnavalescas que fazem a folia na terra natal do músico. Tem maracatus, cirandas e caboclinhos. A maioria das composições é de Alceu, mas há alguns clássicos no repertório. O que se ouve, de forma que emociona, é saudação ao carnaval dos poetas e suas musas, da alegria e busca do amor e da felicidade, que, terminado, deixa saudade no coração.

Alceu Valença reage à indagação sobre demora para fazer o disco de carnaval, algo tão próximo de seu universo. “Para mim o tempo não existe, passado, presente, futuro é ao mesmo tempo”, afirma. Depois justifica: por ter participado de todos os discos do projeto Asas da América, concebido por Carlos Fernando, com artistas os mais diversos cantando canções do carnaval pernambucano, achava que trabalho assim iria se chocar com o projeto do parceiro recém-falecido e homenageado no disco. Reouvindo as gravações, realizadas em Portugal, observando relações entre o Recife antigo e Lisboa – “vi semelhanças entre o frevo dos blocos e o fado” –, reconsiderou. Gravou, inclusive, clipe da música O homem da meia-noite na capital portuguesa.

“'Amigo da arte' traz o lirismo e a loucura do carnaval pernambucano. É panorama de uma festa que não tem nada a ver com a da Bahia. O sotaque é outro”, explica Alceu, estabelecendo ainda diferenças com a folia carioca. E se esparrama de afeto pela diversidade de manifestações do Recife, pela variedade de frevos, blocos malucos que cruzam as ruas, pela poesia portuguesa “na língua do povo”. “Na minha terra os poetas populares são eruditos”, defende. E tira o chapéu para o compositor Capiba. “É o meu imaginário que bate no imaginário do povo brasileiro. E lá existem raízes lusitanas, indígenas, negras. Nossa alma é alma, não soul”, afirma.

“Ser amigo da arte é gostar da arte e não ser simplesmente um boneco da indústria do entretenimento. A pessoa precisa saber que um jingle tem uma loja por trás, é pensado, é matemático, feito a partir de um briefing. Arte, para mim, existe na canção que sai do coração para a boca. Me interessa o que é arte verdadeira”, afirma Alceu Valença. Menino nascido no “sertão profundo”, traz na lembrança o encanto que sentiu ao ver variados tipos de blocos passarem diante da porta da casa dele, na Rua Palmares, ao se mudar para o Recife com 10 anos. Cultivou na juventude o hábito de passar o carnaval em Pernambuco, não só vendo os grupos da capital, mas também visitando cidades próximas, onde pôde ver e ouvir caboclinhos e maracatus e outros grupos.

O entusiasmo com o “carnaval atemporal” de Olinda, onde se pode ouvir ainda hoje a música dos anos 1920 e frevos do século 19, vem junto com constatação dolorida: “Tudo isso está ameaçado. Só se ouve o batidão, o bate-estaca. Embolada virou rap, samba-canção se tornou balada. Onde está o frevo? E o maracatu? Universal é só o que vem da América do Norte?”, indaga. “Temos carnaval sofisticado, que ninguém conhece. Vivemos sob ditadura da mídia que toca um gênero só, o do Rio de Janeiro”, afirma indignado. “Não estou entrando na questão da qualidade ou dizendo que a música de Pernambuco é melhor, mas cada lugar tem o direito a seu carnaval. Precisamos voltar para nossas raízes ”, afirma o cantor e compositor, criticando o que chama de “glamourização do lixo cultural”.

Catarse

“Não nego as minhas raízes, crio a partir delas algo original. É por fazer isso que sou Alceu Valença, não Bob Marley, nem Paul McCartney ou Mick Jagger”, afirma o pernambucano. O artista têm 68 anos e nasceu em São Bento do Una, interior de Pernambuco, mas frisa que ama outras três cidades: Olinda, Rio de Janeiro e Paris. Formado em direito, em 1969, desistiu das carreiras de advogado e jornalista para se dedicar à música. “Vivi cercado de artistas verdadeiros, por isso decidi fazer arte. Meu pai não queria que eu me dedicasse à música, mas não obedecia. Não obedeço a ninguém até hoje. Faço o que quero”, garante.

Entre as lembranças de infância, ligadas ao carnaval, destaca ter visto o pai conversando com o maestro e compositor Nelson Ferreira (1902-1976), especialista em frevos e diretor artístico do selo Mocambo (o único no Brasil dos anos 1950 fora do eixo Rio-São Paulo). “Era um mito que estava na minha casa. Um homem que era reflexo para o povo e vice-versa.” Com emoção lembra-se de show, no Marco Zero, no Recife, carnaval fora de época registrado em DVD: “Foi uma catarse. Eram 160 mil pessoas mostrando que não tinham vergonha da cultura delas”. Está previsto para ser lançado antes do carnaval o clipe 'O homem da meia-noite' e a versão física do disco 'Amigo da arte'.

CONVITE

A capa do disco 'Amigo da arte' reproduz convite de casamento de Alceu Valença com Yanê Montenegro, desenhado pela pintora Marisa Lacerda. A imagem sinaliza diálogo do novo trabalho com o disco 'Maracatus, batuques e ladeiras' (1994), que também tem capa com desenho da artista.

Três perguntas para...
Alceu Valença, músico

O carnaval é parte da sua formação musical?

Ele é uma das referências da minha música. Tudo meu é pessoal, porque é vivenciado. Tenho o Nordeste profundo, o sertão profundo, caminho de Pernambuco a Minas pela margem esquerda do São Francisco, onde se estabeleceu a civilização do couro. Sei cantigas medievais, aboios dos vaqueiros. Quando fui para o Recife, morei na Rua dos Palmares, onde, durante o carnaval, passavam todas as manifestações. O que ouvi foi o frevo de orquestra, as pessoas cantando em coro, carnaval em que não se fazia muita bagunça. A diversidade do carnaval pernambucano se fundiu à minha personalidade, que também é assim.

Qual é a alma do carnaval?

A alegria que passa em quatro dias, uma alegria passageira. Como o ser humano é alegre e nostálgico, isso se reflete nas músicas. É como diz a música de Luiz Bandeira: “Ó quarta-feira ingrata/ chega tão depressa/só pra contrariar/ quem é de fato/ um bom pernambucano/ que espera um ano/ e se mete na brincadeira/ esquece tudo quando cai no frevo/ e no melhor da festa chega a quarta-feira”. O carnaval traz momentos lúdicos, mágicos. Você pode fantasiar, pode ficar bêbado, fazer merda. É ótimo.

Onde você passa os dias de folia?

Em Pernambuco: Olinda e cidades próximas. Tudo que está no disco 'Amigo da arte' tem nas ruas de Recife: frevo de canção, de bloco, de orquestra; afoxé; ciranda; maracatu rural e baque virado. À noite, o Marco Zero é um grande quartel-general do frevo, especialmente bom, porque não tem arma, tudo é só brincadeira. É o meu carnaval. Sou dos que acham que não tem essa história de um carnaval ser melhor do que o outro. O do Rio é o do Rio e o de Olinda o de Olinda. Ouro Preto tem um carnaval maravilhoso, que tem de ser cultuado. Cada um tem o seu jeito e o direito de ser o que é.

Palavra de especialista

Rodrigo Toffolo - Regente da Orquestra Ouro Preto


Existe na música de Alceu Valença um sentimento de brasilidade forte. E quando dizemos Brasil é preciso lembrar que se trata de país grande, com diversas formas de falar, comer, viver, vestir. Alceu é daqueles artistas que passam sentido de nação, que fazem a pessoa se sentir brasileiro ao ter contato com sua arte. São composições benfeitas, bem pensadas e desafiadoras, mas que soam simples, que falam diretamente a nós. E conseguir soar simples é o segredo da boa música e das grandes figuras. (Em maio será lançado o DVD 'Valencianas', com Alceu Valença e Orquestra Ouro Preto.)

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