Em dúvida entre traçar um plano de comunicação para a empresa dos pais e escrever sobre o avô, a repórter baiana Jessica Smetak Paoli ficou com a segunda opção. O que era para ser um trabalho de conclusão do curso de jornalismo transformou-se no momento principal da comemoração do centenário de Walter Smetak (1913-1984): músico, compositor e construtor de instrumentos, esse suíço radicou-se em Salvador e influenciou artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé e Marco Antônio Guimarães (e Uakti, consequentemente). Lançado este mês, o livro 'Walter Smetak – Som e espírito' centra foco em sua vida pessoal.
Jessica, de 24 anos, não conheceu o avô, que morreu em 1984. “Ouvia minha tia Bárbara falar dele como um europeu conservador em casa, mas permissivo na escola de música. Fui destrinchar a vida dele na pesquisa para esse livro, fui conhecê-lo agora. Hoje, posso dizer que o conheço tão bem quanto meus tios. Sei dos hábitos e dos horários dele, do que gostava de comer”, conta a jornalista. Foram 45 entrevistados (cada conversa durou entre uma e duas horas), incluindo gente como Gil, Caetano e o antropólogo Antonio Risério.
São muitos os que já escreveram sobre os instrumentos e conceitos musicais criados por Smetak. Entretanto, nem sempre outros aspectos de sua vida são levados em conta. Nesse sentido, nada como pertencer à família do objeto de estudo para ter acesso a informações, histórias, documentos e fotos. “Quem não o conheceu fica na dúvida de quem ele era. Existe uma lacuna na biografia sobre ele, pois sempre falam no ambiente musical. O livro esclarece muito a questão espiritual e as plásticas sonoras, qual era a ideologia dele, suas intenções. Não é uma obra sobre improviso e microtons, mas sobre o porquê disso”, afirma Jessica.
Com 350 páginas, a obra tem biografia do músico suíço, depoimentos, reprodução de documentos e fotos pessoais e caderno de imagens com alguns de seus instrumentos. A primeira edição tem 2 mil exemplares e foi lançada pela série Gente da Bahia, da Assembleia Legistativa da Bahia, responsável pela impressão. Parte foi distribuída para instituições do estado (como escolas) e outra será colocada à venda em livrarias de Salvador. A autora tem alguns, que vende diretamente aos interessados. O contato pode ser feito pelo e-mail bio.waltersmetak@gmail.com.
Nas telas
Paralelamente, trio de realizadores formado por Mateus Dantas, Simone Dourado e o belga Nicolas Hallet atualmente está às voltas com a produção de documentário sobre Smetak, ainda sem título, previsto para estrear ano que vem. “Ele precisa ser mais conhecido. Fomos pesquisar e achamos muitos trabalhos sobre ele, mas faltava um na área audiovisual. Smetak é uma síntese de imagem e som”, comenta Nicolas.
Entre os entrevistados estão Rogério Duarte (intelectual ligado ao Tropicalismo), Carlos Pita (que produziu o segundo disco de Smetak, Interregno, de 1980), Tuzé de Abreu (músico e pesquisador) e Marco Scarassatti (músico e autor de livro sobre o suíço). “O filme mesclará esses depoimentos a momentos de maior liberdade artística. Mateus e Marco conhecem muito bem e tocam os instrumentos de Smetak para a trilha sonora. A música convencional seria muito careta para passar as emoções que a gente queria. Pensamos num universo maior”, adianta Nicolas.
Inspiração para o Uakti
“Sem Smetak, o Uakti certamente não existiria”, declara o flautista Artur Andrés, integrante do grupo mineiro. Graças ao encontro com o suíço na Bahia, Marco Antônio Guimarães cresceu como músico e compositor e iniciou a produção dos notáveis instrumentos que tornam inconfundível a sonoridade do Uakti. “Marco foi das poucas pessoas que trabalharam com ele por tempo significativo e, no nosso caso, isso traz uma responsabilidade”, observa ele.
Artur conheceu Smetak no fim dos anos 1970, durante um festival de inverno em Minas Gerais. “Ele era um ser humano muito profundo e introspectivo, no sentido de ser alguém trabalhado interiormente. Ele dizia que a nova humanidade necessita de uma nova música e, para isso, era preciso novos instrumentos. Isso define bem o visionário que ele foi. Sinto-me muito privilegiado e feliz por poder participar disso. Nutrimos esse processo com o Uakti, que é uma pequena janela aberta para um universo novo”, diz.
Três perguntas para...
Marco Scarassatti
professor da UFMG e autor do livro 'Walter Smetak: O alquimista dos sons'
Até que ponto a criação dos instrumentos de Smetak tem relação com a cultura e os materiais brasileiros? A obra que ele criou no país poderia ter sido feita na Europa?
Embora Smetak fosse suíço de nascimento, a obra dele é brasileira, tanto em termos materiais, da constituição física de seu instrumental, quanto em termos filosóficos e espirituais. Ele próprio disse isso. Aqui que se deu o processo de transformação do músico tradicional europeu e violoncelista em um artista múltiplo, poeta, compositor, criador das plásticas sonoras, visionário de uma multimídia desplugada e profeta de um mundo que estaria por vir. Foi em Salvador que se deu essa transformação. Foi ali, em contato com a música concreta, num concerto trazido por Koellreutter, que surgiu a necessidade de se pensar uma música feita com novas fontes sonoras, novos instrumentos. E a cabaça proporcionou a ele se desprender da luteria tradicional para inventar essas novas fontes e desempenhar uma trajetória criativa que vai da subversão das formas dos instrumentos musicais convencionais até a concepção de objetos que integravam música, espiritualidade e artes visuais.
O trabalho de Smetak na música também teve relações com outras artes e formas de pensamento. Como você analisa esse caráter múltiplo de sua atuação e criação?
Smetak dizia que som e luz tinham origem no mesmo elemento, o Akasha. Seu trabalho plástico sonoro transparece e revela essa crença. De um lado, volta-se para o interior da caixa acústica em busca do som gerador, que seria a menor partícula sonora existente, contínua, um átomo de som vibrante, microtonal. De outro, cria superfície de contato desse som com o mundo, o exterioriza como forma plástica, tátil, que provoca, aguça e convida à interação, ao toque. E assim, no toque, o som se desprende da forma plástica para vibrar no espaço acústico. Embora eu fale sempre da aproximação entre música, performance e artes visuais, de alguma forma esses objetos criados pelo Smetak recusam o estatuto de arte, porque para ele os instrumentos eram veículos de transformação, templos em miniatura nos quais o músico exercitaria a intuição por meio da improvisação.
Você vê alguma marca da obra de Smetak na música feita atualmente?
De certa forma, sim. A gente pode dizer que há algo de Smetak no grupo Uakti, do ponto de vista da construção do instrumental. Creio que haja algo, ou muito, do Smetak na arte sonora brasileira: há também uma corrente ligada à improvisação livre e ao experimental que reverbera o pensamento e procedimento do Smetak frente a essas questões. Porém, Smetak ainda é um ilustre desconhecido cuja obra luta contra destino trágico, sempre à beira de se deteriorar. Ele ainda tem que ser descoberto e seus instrumentos, ou suas réplicas, têm que ser tocados para que se possa descobrir sua música. É preciso que se entenda que cada um de seus instrumentos só se completa com o toque. Luz e som, escultura e música, no caso do Smetak, precisam do elemento que cria o elo entre eles, precisam do ser humano que, ao interagir com a superfície de contato do objeto com o mundo, exterioriza o som que nele está contido. Os instrumentos precisam estar acessíveis ao toque.
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São muitos os que já escreveram sobre os instrumentos e conceitos musicais criados por Smetak. Entretanto, nem sempre outros aspectos de sua vida são levados em conta. Nesse sentido, nada como pertencer à família do objeto de estudo para ter acesso a informações, histórias, documentos e fotos. “Quem não o conheceu fica na dúvida de quem ele era. Existe uma lacuna na biografia sobre ele, pois sempre falam no ambiente musical. O livro esclarece muito a questão espiritual e as plásticas sonoras, qual era a ideologia dele, suas intenções. Não é uma obra sobre improviso e microtons, mas sobre o porquê disso”, afirma Jessica.
Com 350 páginas, a obra tem biografia do músico suíço, depoimentos, reprodução de documentos e fotos pessoais e caderno de imagens com alguns de seus instrumentos. A primeira edição tem 2 mil exemplares e foi lançada pela série Gente da Bahia, da Assembleia Legistativa da Bahia, responsável pela impressão. Parte foi distribuída para instituições do estado (como escolas) e outra será colocada à venda em livrarias de Salvador. A autora tem alguns, que vende diretamente aos interessados. O contato pode ser feito pelo e-mail bio.waltersmetak@gmail.com.
Nas telas
Paralelamente, trio de realizadores formado por Mateus Dantas, Simone Dourado e o belga Nicolas Hallet atualmente está às voltas com a produção de documentário sobre Smetak, ainda sem título, previsto para estrear ano que vem. “Ele precisa ser mais conhecido. Fomos pesquisar e achamos muitos trabalhos sobre ele, mas faltava um na área audiovisual. Smetak é uma síntese de imagem e som”, comenta Nicolas.
Entre os entrevistados estão Rogério Duarte (intelectual ligado ao Tropicalismo), Carlos Pita (que produziu o segundo disco de Smetak, Interregno, de 1980), Tuzé de Abreu (músico e pesquisador) e Marco Scarassatti (músico e autor de livro sobre o suíço). “O filme mesclará esses depoimentos a momentos de maior liberdade artística. Mateus e Marco conhecem muito bem e tocam os instrumentos de Smetak para a trilha sonora. A música convencional seria muito careta para passar as emoções que a gente queria. Pensamos num universo maior”, adianta Nicolas.
Inspiração para o Uakti
“Sem Smetak, o Uakti certamente não existiria”, declara o flautista Artur Andrés, integrante do grupo mineiro. Graças ao encontro com o suíço na Bahia, Marco Antônio Guimarães cresceu como músico e compositor e iniciou a produção dos notáveis instrumentos que tornam inconfundível a sonoridade do Uakti. “Marco foi das poucas pessoas que trabalharam com ele por tempo significativo e, no nosso caso, isso traz uma responsabilidade”, observa ele.
Artur conheceu Smetak no fim dos anos 1970, durante um festival de inverno em Minas Gerais. “Ele era um ser humano muito profundo e introspectivo, no sentido de ser alguém trabalhado interiormente. Ele dizia que a nova humanidade necessita de uma nova música e, para isso, era preciso novos instrumentos. Isso define bem o visionário que ele foi. Sinto-me muito privilegiado e feliz por poder participar disso. Nutrimos esse processo com o Uakti, que é uma pequena janela aberta para um universo novo”, diz.
Três perguntas para...
Marco Scarassatti
professor da UFMG e autor do livro 'Walter Smetak: O alquimista dos sons'
Até que ponto a criação dos instrumentos de Smetak tem relação com a cultura e os materiais brasileiros? A obra que ele criou no país poderia ter sido feita na Europa?
Embora Smetak fosse suíço de nascimento, a obra dele é brasileira, tanto em termos materiais, da constituição física de seu instrumental, quanto em termos filosóficos e espirituais. Ele próprio disse isso. Aqui que se deu o processo de transformação do músico tradicional europeu e violoncelista em um artista múltiplo, poeta, compositor, criador das plásticas sonoras, visionário de uma multimídia desplugada e profeta de um mundo que estaria por vir. Foi em Salvador que se deu essa transformação. Foi ali, em contato com a música concreta, num concerto trazido por Koellreutter, que surgiu a necessidade de se pensar uma música feita com novas fontes sonoras, novos instrumentos. E a cabaça proporcionou a ele se desprender da luteria tradicional para inventar essas novas fontes e desempenhar uma trajetória criativa que vai da subversão das formas dos instrumentos musicais convencionais até a concepção de objetos que integravam música, espiritualidade e artes visuais.
O trabalho de Smetak na música também teve relações com outras artes e formas de pensamento. Como você analisa esse caráter múltiplo de sua atuação e criação?
Smetak dizia que som e luz tinham origem no mesmo elemento, o Akasha. Seu trabalho plástico sonoro transparece e revela essa crença. De um lado, volta-se para o interior da caixa acústica em busca do som gerador, que seria a menor partícula sonora existente, contínua, um átomo de som vibrante, microtonal. De outro, cria superfície de contato desse som com o mundo, o exterioriza como forma plástica, tátil, que provoca, aguça e convida à interação, ao toque. E assim, no toque, o som se desprende da forma plástica para vibrar no espaço acústico. Embora eu fale sempre da aproximação entre música, performance e artes visuais, de alguma forma esses objetos criados pelo Smetak recusam o estatuto de arte, porque para ele os instrumentos eram veículos de transformação, templos em miniatura nos quais o músico exercitaria a intuição por meio da improvisação.
Você vê alguma marca da obra de Smetak na música feita atualmente?
De certa forma, sim. A gente pode dizer que há algo de Smetak no grupo Uakti, do ponto de vista da construção do instrumental. Creio que haja algo, ou muito, do Smetak na arte sonora brasileira: há também uma corrente ligada à improvisação livre e ao experimental que reverbera o pensamento e procedimento do Smetak frente a essas questões. Porém, Smetak ainda é um ilustre desconhecido cuja obra luta contra destino trágico, sempre à beira de se deteriorar. Ele ainda tem que ser descoberto e seus instrumentos, ou suas réplicas, têm que ser tocados para que se possa descobrir sua música. É preciso que se entenda que cada um de seus instrumentos só se completa com o toque. Luz e som, escultura e música, no caso do Smetak, precisam do elemento que cria o elo entre eles, precisam do ser humano que, ao interagir com a superfície de contato do objeto com o mundo, exterioriza o som que nele está contido. Os instrumentos precisam estar acessíveis ao toque.