Musica

Kanye West e Jay-Z produzem o que há de mais criativo e vigoroso na música negra urbana

Os dois rappers estão com discos novos nas lojas, na TV, nas rádios e nas paradas de sucesso

Arthur G. Couto Duarte

Ao lado de Nas, os astros Kanye West e Jay-Z respondem pelo triunvirato que comanda a nata da música urbana negra mundial. Ainda que vez por outra o trio escorregue nas mesmas declarações arrogantes e sexistas que deram má fama ao gênero, no mais das vezes eles têm se destacado não só pela ousadia musical como também por letras prenhes de curiosas indagações acerca dos paradoxos atrelados aos avanços da tecnologia, da paranoia gerada pela fama e dos rumos da crescente violência que grassa dentro dos bolsões mais miseráveis da comunidade afroamericana.


Se Nas foi responsável ano passado pelo surpreendente 'Life is good', álbum em que dava vazão a questionamentos de ordem pessoal, como divórcio, responsabilidade sobre a paternidade, esgotamento criativo e o próprio envelhecimento, agora é a vez de Kanye West e Jay-Z responderem à altura com os respectivos Yeezus e Magna Carta Holy Grail.

Na verdade, como parceiros, Jay-Z e Kanye West já haviam travado um choque de titãs quando forjaram novos paradigmas para o hip-hop no álbum 'Watch the throne'. Detentores de uma obra que lhes serviu de alforria para liberar sua verve rebelde, agora ambos deram vazão a ambiciosos trabalhos conceituais. Não importa se tais CDs chegaram ao topo das paradas assim que foram disponibilizados no mercado: ainda que tal vendagem bilionária possa sugerir outra investida fácil sobre as massas, 'Yeezus' e 'Magna Carta Holy Grail' de fato apontam mudanças de curso para um gênero há tempos refém da violência desmesurada e gratuita imposta pela vertente gansta.

 

Nos limites da audição

Notório pela inquietude, Kanye West veio esbater as fronteiras do hip-hop quando incorporou em gravações anteriores influências do rock de arena, do pop barroco, do folk e da música erudita. Mas nada do que produziu previamente sugeria o que estava por vir em 'Yeezus'. A partir do seu interesse pelo espartano estilo arquitetônico desenvolvido há quase um século pelo francês Le Corbusier – nesse sentido, o rapper chegou a empreender várias visitas ao Museu do Louvre –, West forjou uma gravação a um só tempo asfixiante, minimalista, sombria e irresolutamente experimental.

O acinte provido por Kanye West e seu 'Yeezus' é antecipado pela inusitada embalagem do disco. Envolto por uma caixa de acrílico desprovida de foto, desenho, pintura ou qualquer esboço de arte gráfica, o CD tem como única identificação um pequenino retângulo vermelho e os créditos da gravação, colados a um adesivo transparente que torna quase impossível a sua leitura.

Tamanho atrevimento anticomercial não privou o sexto álbum de West de ser catapultado ao topo das paradas ainda na primeira semana de lançamento. Ao abrigar interseções com o mais abrasivo pós-punk, a escola avant-garde e o rock industrial, além do abusar do uso de samples extraídos de discos gravados por artistas tão díspares quanto a jazzista Nina Simone, a obscura banda húngara de prog-rock Omega ou o fusionista reggae-soca-dancehall jamaicano Beenie Mann, Yeesus ainda soa como hip-hop ao final de sua extenuante audição. Só que reconstruído como um ser mutante, a emanar ruídos, blasfêmias, dissonâncias e outras interferências sônicas extremas; aflitas para romper os limites tolerados pela audição humana.

“Estupidez é contagiosa?”

Da pobreza das ruas do Brooklyn nova-iorquino à sua entronização no patamar da cena rap/hip-hop do planeta, Shawn Corey “Jay-Z” Carter percorreu um caminho e tanto. Dono de um estilo fluido, a um só tempo dançante e hipnótico, o rapper – ao modo de Kanye West – sempre abraçou polêmicas. Vide seu 'Black album', densa gravação de cunho autobiográfico que marcaria sua precoce aposentadoria, em 2003, só para ser seguido, três anos depois, pelo cartunesco 'Kingdom come', no qual – em alusão à homônima graphic novel na qual um envelhecido Superman deixava a inatividade – o marido de Beyoncé retornava à cena para salvar o hip-hop da “má influência” exercida pela atual geração rapper.

Portando fotos de obras que integram o acervo do Museu Metropolitano de Arte e um título que remete a um só tempo a fé (o cálice sagrado) e a democracia (a Magna Carta), o 12º CD de Jay-Z é pródigo em metáforas e referências históricas. De forma aleatória, personagens como Júlio César, Leonardo da Vinci, Pablo Picasso, o gângster Lucky Luciano e os artistas plásticos Mark Rothko e Jean-Michel Basquiat se entrechocam nas 16 faixas do disco com anônimos outsiders nos becos e guetos de Nova York. Um artifício para que o artista – enquanto mira em dezenas de outros alvos – detone o mundinho dos intrusivos paparazzi, enalteça o poder revolucionário da arte, mande a própria fama às favas ou indague se a estupidez humana poderia vir a ser uma espécie de doença contagiosa.

Musicalmente, o exagerado Jay-Z se valeu da competência de mais de uma dúzia de produtores (entre eles o excêntrico jamaicano Boi-1da e o hiperativo Timbaland) para forjar uma sonoridade cortante, propulsionada por batidas fortíssimas e pespontada aqui e ali com bem sacadas citações de Nirvana, R.E.M., Notorious B.I.G., Johnny Guitar Watson e Sizzla Kalonji. Em suma, se não chega mudar o hip-hop Jay-Z certamente reinventou rimas, motivações e outras ultrapassadas “regras do jogo”.