Discos instrumentais de músicos mineiros se aproximam do universo religioso com linguagem própria

Inspiração vem dos mantras indianos, das composições de Gurdjieff e do candomblé

por Eduardo Tristão Girão 17/05/2013 08:49

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Rai Shizuno/Divulgação
Renato Motha e Patrícia Lobato gravaram álbum duplo de mantras no Japão, com participação de músicos brasileiros (foto: Rai Shizuno/Divulgação)
Cada história tem suas próprias nuances, mas, no fundo, são um tanto semelhantes: músicos que se aproximaram de uma religião ou filosofia espiritual resolveram mergulhar ainda mais fundo e desenvolveram trabalhos paralelos baseados nessas verdadeiras matrizes estéticas. Discos de artistas mineiros que seguiram esse caminho têm em comum o fato de não serem destinados a público restrito, constituídos por composições realmente interessantes – e, muitas vezes, mesclando elementos brasileiros.

Exemplo mais recente disso, 'Sunni-e' é o terceiro álbum dedicado aos mantras indianos lançado por Renato Motha e Patrícia Lobato. Gravado em Belo Horizonte e no Japão, é composto por dois discos: 'Shakti' (força, movimento) e 'Bhakti' (devoção, contemplação), totalizando 20 faixas que unem textos sagrados orientais, instrumentos de origens diversas (cítara, violoncelo, tabla, ukulele, escaleta etc.), a voz e herança musical dos mineiros.

“Nós dois tivemos contato com o kundalini ioga em 2004 e um dos seus pilares é o som. As pessoas com quem convivíamos na ioga sabiam que éramos músicos e pediam para que tocássemos a música que, até então, só se ouvia por meio de discos”, lembra Renato. O incentivo provocou efeito e, assim, o duo lançou os álbuns 'Shabds' para a paz (2007), 'In mantra' (2010) e, no ano passado, 'Sunni-e'. “Foi muito bom para colocar nossa marca, da música mineira, nos mantras”, conta ele.

Na opinião de Renato, a música que fazem tem consistência, independentemente da parte espiritual à qual está diretamente ligada. “Esse tipo de música ficou estereotipado por causa do modismo da música new age, com aquele tecladinho de fundo. Nosso desejo é que qualquer pessoa possa ouvir e gostar do nosso trabalho. Não temos pretensão de que seja algo fechado, sectário.” Ele faz questão de frisar que não há vínculo oficial com nenhuma religião e que todo ano realiza concerto de mantras aberto ao público.

Além da capital mineira, o duo já apresentou seus mantras em São Paulo, Estados Unidos e Japão – inclusive, o show de lançamento de Sunni-e foi realizado primeiro para a plateia nipônica. “Sinto que está havendo abertura gradual para esse tipo de trabalho. As pessoas ainda têm algum receio, preconceito, dificuldade de lidar com algo que pode ser religioso, não entendendo que a espiritualidade é algo muito mais amplo, inerente ao ser humano”, observa Renato.

Musicalmente, a fusão de elementos indianos e mineiros também é algo que lhe estimula bastante. O contraste entre as noções de harmonia, por exemplo, é alvo de sua atenção: “Comecei a lidar com ritmos, escalas e estruturas melódicas diferentes. A música mineira é muito estruturada na harmonia e a harmonia indiana é baseada no baixo contínuo. Repensar a harmonia desse ponto de vista é muito interessante e todos esses elementos enriqueceram muito o que fazemos”.

Marcos Michelin/EM/D.A Press
Artur Andrés e Regina Amaral já registraram quatro discos com temas de Gurdjieff (foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press)
Respostas
Foi ainda adolescente que o flautista Artur Andrés teve contato com a obra do mestre espiritual armeno George Ivanovich Gurdjieff (1866-1949), que deixou, além de ensinamentos, composições para piano influenciadas pela estética oriental. “Minha mãe sempre buscou respostas às questões espirituais e lia literatura do Oriente. Foi ela quem me deu o primeiro livro sobre ele, 'Fragmentos de um ensinamento desconhecido'”, lembra o músico, que integra o grupo instrumental Uakti.

Além de ter encontrado algumas respostas que procurava, Artur se interessou pela ligação de Gurdjieff com a música e buscou tudo o que está relacionado a ele. Foram muitos anos de estudo até chegar ao primeiro dos quatro discos que já gravou com a obra do pensador armeno, intitulado 'Cantos e ritmos do Oriente' e lançado em 2001. Depois vieram 'Música dos sayyids e dos dervixes' (2002), 'Hinos, preces e ritos' (2004) e 'Viagens a lugares inacessíveis' (2011).

Todos foram gravados com a mulher, a pianista Regina Amaral, sendo que o flautista Mauro Rodrigues participou dos três primeiros lançamentos e o também flautista Alexandre Andrés (filho de Artur e Regina), do último. “A arte virou entretenimento e o nosso interesse parte da necessidade de resgate da arte despojada do ego e a serviço de algo maior”, analisa Artur.

“A música dele toca num lugar dentro da gente que remonta a impressões muito profundas, a sentimentos como compaixão e humildade. Demanda maturação interna, um certo grau de compreensão, e se tivesse começado a gravá-la 15 anos antes, seria uma tragédia. Ela pede que, ao tocar, a gente não seja impetuoso, mas despojado, limitando-se ao essencial”, afirma o flautista. Ele revela que há muitas outras composições de Gurdjieff por gravar, incluindo algumas que comportam improvisação.

Fernando Fiúza/Divulgação
Neném e Mauro Rodrigues mesclam cantos africanos com a linguagem do jazz (foto: Fernando Fiúza/Divulgação )
Outros mundos
Curiosamente, o flautista Mauro Rodrigues, que participou da maioria desses discos dedicados à música de Gurdjieff, também tocou no álbum 'Sunni-e', de Renato Motha e Patrícia Lobato, e gravou com o baterista Esdra “Neném” Ferreira o CD 'Suíte para os orixás', lançado em 2006. “A ligação da música com esse universo espiritual me atrai. Tem a ver com aquela ideia do Jerzy Grotowski de arte como veículo, para contato com outros mundos”, comenta Mauro.

'Suíte para os orixás' nasceu literalmente de um sonho que o flautista teve envolvendo música tocada com flauta, percussão e orquestra. Lembrar exatamente o que era foi impossível, mas serviu de ponto de partida para conversa com Neném, que sugeriu usar elementos musicais do candomblé. “Na época, nem sabia que ele era ogã”, confessa. Ogã é o responsável pelo toque de tambor para chamar os orixás no terreiro.

Mauro e Neném formaram um sexteto e gravaram com orquestra de cordas, misturando cantos e ritmos das tradições keto e angola a linguagens musicais mais recentes, como a do jazz. “Quando tocamos, é uma função mesmo. Inclusive, a ordem em que os orixás aparecem na obra é estabelecida, não foi inventada por nós. É um ritual. Isso cria atmosfera e possibilita uma qualidade de atenção que tem a ver com aquela situação. Só acontece ali, naquele momento”, avalia.

Eles realizaram diversos concertos com esse repertório e conquistaram o Prêmio Marco Antônio Araújo de 2006, conferido às melhores produções instrumentais independentes de Minas Gerais. “O público comenta que é uma música diferente e principalmente pessoas ligadas à religião enxergam nesse trabalho uma outra possibilidade”, conta. A dupla pretende dar prosseguimento ao projeto, gravando DVD que terá peças do disco anterior e inéditas, trazendo mais sopros à formação.

Ouça às faixas 'Ogum', do Suítes para os Orixás e 'Kurd shepherd melody', de Gurdjieff e De Hartmann:







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