No passado, grandes figuras da nossa literatura, como Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino, costumavam escalar os arcos de um dos cartões-postais de Belo Horizonte, o Viaduto de Santa Tereza. Hoje, é embaixo dele que a arte e a cultura se manifestam. O lugar, palco de um dos eventos de rua mais genuínos da capital, o Duelo de MCs, se tornou um celeiro de talentos. Desde que começou a ser realizado, em agosto de 2007, vem revelando dezenas de artistas do hip hop, que se tornaram referências não só na cidade, como no Brasil. “Ao longo destes cinco anos, foram realizados mais de 200 duelos e muitos nomes surgiram. Hoje, nós temos uns 30 MCs que participam assiduamente e pelo menos 10 despontaram aqui e têm projeção nacional. Sem dúvida, é o melhor momento que o rap já viveu em Belo Horizonte”, ressalta Pedro Valentim, o PDR, um dos integrantes e fundadores do Coletivo Família de Rua, organizador do Duelo de MCs. Foi nas batalhas promovidas todas as sextas-feiras sob o viaduto que surgiram, por exemplo, dois dos principais representantes da rima improvisada hoje no país: MC FBC, de 23 anos, e Douglas Din, de 21. Os rappers são recordistas de vitórias no evento, com aproximadamente 30 conquistas cada. Douglas lembra que cresceu ouvindo a Rádio Favela e foi muito influenciado pelos Racionais MCs. Com 14 anos, começou a compor os próprios raps. “Eram meio politizados, mas sem consciência alguma do que eu estava falando. Eram até um pouco agressivos”, recorda. Quando conheceu o Duelo de MCs, teve vontade de participar, mas estava receoso. “No início, não sabia como deveria fazer. Me lembro de ficar vendo as batalhas no Viaduto de Santa Tereza e ia para casa assistir ao vídeo na internet e treinar. Foi assim que comecei a improvisar. Você cria na hora o que quiser. Tem que pensar rápido, porque é muito dinâmico”, frisa. Desde que passou a concorrer na disputa promovida pelo Família de Rua, alcançou várias vitórias e, a partir daí, foram surgindo novas oportunidades. Participou de outras competições, inclusive nacionais, e em boa parte delas batia na trave e só conquistava o segundo lugar. “O pessoal começou a falar que eu estava igual ao Vasco. Só conseguia ser vice”, brinca. Até que, no ano passado, veio a glória, quando se sagrou campeão do Duelo de MCs Nacional. Hoje, Douglas Din é um dos principais nomes do rap de improviso no país e os amigos asseguram que o rapper é temido pelos adversários. “Eu me considero o mais preparado. Não sou o melhor. Hoje, vivo do rap. Ele é a oportunidade de falar aquilo que estou realmente sentindo. Pode não parecer, mas sou muito tímido. Mas no palco, quando vejo aquele tanto de gente, me entrego mesmo e me solto”, comenta o artista. FBC também descobriu o gênero na adolescência e costumava criar rap em cima de canções de pagode, sertanejo e até de rock, outras de suas paixões. Decidiu se tornar um MC e hoje alterna o trabalho na música com o ofício de ambulante de água e cerveja, durante os duelos na sexta-feira, e ao longo da semana, na Avenida Amazonas, vendendo frutas. “Vai sobressair o MC que tem um vocabulário mais denso, extenso e mais conhecimento. É uma batalha, mas não basta apenas atacar o outro”, aconselha ele, que, além das disputas, costuma apresentar pockets shows durante o Duelo. Diferença Outra grande revelação, e que inclusive está trilhando caminho próprio, é Pedro Vuks, de 24 anos. Leitor de Cecília Meireles e Machado de Assis, acabou largando o futebol quando conheceu o freestyle ou rap livre, que se caracteriza por letras improvisadas. Dois rappers fazem freestyle, geralmente atacando um ao outro, e o público decide o vencedor. “Teria um outro destino se não tivesse conhecido o rap, um destino infeliz, provavelmente, assim como muitos dos meus amigos. Faço música porque acho que ela pode fazer diferença na vida das pessoas”, acredita Vuks, que lançou no ano passado seu primeiro disco e que vendeu 5,5 mil cópias até então. O artista já duelou muito no evento, que ele, aliás, ajudou a criar. Mas diz que não tem mais o mesmo “fôlego da garotada” e prefere participar como convidado. “Tenho feito muito show pelo Brasil e agradeço muito ao rap. Pode parecer frase de efeito, mas o rap me deu tudo o que tenho na vida. Tudo mesmo! O carro que comprei, a minha casa. Até andar de avião pela primeira vez foi por causa do rap. Isso sem falar que larguei o cigarro e a bebida. A música me deu muita oportunidade. Mas tem que começar a pensar no futuro. Não vou ficar fazendo rap com 70 anos. A gente tem que pensar nisso. Ampliar e ajudar quem está começando”, propõe. >> Semana a semana O duelo de MCs começou em agosto de 2007 e é promovido pelo Coletivo Família de Rua. É realizado todas as sextas-feiras, a partir das 21h, debaixo do Viaduto de Santa Tereza, no Centro de BH. » 1ª semana do mês Batalha tradicional. Cada duelista tem dois rounds de 45 segundos para derrubar seu adversário tecendo rimas de ataque e defesa. » 2ª semana do mês Batalha do conhecimento. Diferentemente de um duelo clássico – no qual o foco principal são ataques diretos entre os adversários –, numa batalha do conhecimento o mestre de cerimônias mais bem-sucedido é aquele que tece os melhores versos a respeito da temática proposta. » 3ª semana do mês Batalha do bate e volta. Ataque e resposta entre os MCs no compasso da música. » 4ª semana do mês Batalha de dança. Disputa entre os melhores dançarinos.
Poesia das ruas No cenário do Duelo de MCs se encontram várias experiências e histórias de vida. Em comum, a certeza de que a arte é o caminho que melhor permite a expressão de ideias e visão de mundo. Além disso, o hip hop acabou por se tornar um destino, um horizonte profissional que dialoga com outras manifestações. Os MCs, quando não estão envolvidos na disputa sob o viaduto, mostram talento como poetas, agitadores culturais, dançarinos, responsáveis por oficinas de literatura e até como skatistas. H. Apocalypse, de 19 anos, emergiu no Duelo de MCs e também vem se dedicando aos shows em várias cantos do país. Ele destaca o papel que o evento teve em sua formação. “Andava de skate e aí conheci a galera do hip hop. Quando fui ao Duelo pela primeira vez, gostei muito e não tenho dúvida de que me ajudou demais. Já ganhei muitas batalhas, mas hoje tenho meus projetos paralelos e atuo mais como juiz no viaduto. Gosto do rap porque a linguagem é direta. É uma maneira de mostrar a música e a arte de uma forma objetiva”, revela o jovem. “Sempre vivi no meio das artes e além de rapper trabalho no Giramundo (que foi fundado por seu avô Álvaro Apocalypse). Minha mãe sempre me incentivou e costuma ir às minhas apresentações, mas meu pai só assimilou quando percebeu que eu estava mesmo me dedicando e que aquilo estava dando certo”, revela. Assim como H. Apocalypse, Kdu dos Anjos, de 21, sempre esteve envolvido com várias manifestações artísticas. Tanto é que, além do rap, é articulador do sarau de poesia Vira Latas, movimento itinerante, literário e cultural, e ministra oficinas de literatura marginal e empreendedorismo cultural. “Sempre gostei de música, teatro e passei a escrever poesia ainda garoto. Depois vi que o rap também é poesia. Quando assisti ao filme do Eminem, Rua das ilusões, que retrata bem o que é este duelo aqui, falei: ‘Gostei disso. É isso que quero fazer’. O rap tem um lugar muito especial na minha vida e espero que sempre tenha”, enfatiza. Vuks (Pedro Henrique Pinto Soares), de 24 anos, é um dos nomes mais conceituados do hip hop mineiro e do Brasil. Lançou no ano passado seu primeiro disco com nove faixas autorais e dois clipes: Iluminado e Hoje, que tiveram boa aceitação do público. Foi um dos criadores do Duelo de MCs, mas hoje participa como convidado, já que tem uma agenda com apresentações em todo o Brasil, como no próximo domingo, quando estará em Florianópolis. Vuks, que é casado e se prepara para a chegada do primeiro filho em dezembro, está na produção do segundo disco e classifica seu estilo como “música de mensagem”.
MC FBC (Fabrício Soares Teixeira), de 23 anos. Mora no Bairro Cabana, na Região Oeste da capital, mas foi criado em Santa Luzia, na região metropolitana. É uma das revelações do rap de improvisação não só em BH, como do Brasil. Um dos MCs mais bem-sucedidos nos duelos, com aproximadamente 30 vitórias, ele também conquistou outros concursos, como o Cidade Hip Hop, em 2010. Considera seu estilo como “largado” e tem como referência o MC Matéria Prima, de BH.
H. Apocalypse (Mário Apocalypse), de 19 anos. De uma família de artistas – é neto do criador do Grupo Giramundo, Álvaro Apocalypse –, descobriu o rap por meio da turma de skatistas com quem andava. Faz parte do coletivo C. A. O. S., junto com os MCs FBC e Well e o beatmaker Coyote, e tem feito shows em várias cidades do interior de Minas. Apocalypse tem videoclipes gravados e se prepara para lançar em breve o primeiro EP.
Douglas Din (Douglas Nascimento da Silva), de 21 anos. Mora no Bairro da Serra, Região Centro-Sul, e descobriu a cultura hip hop quando passou a escutar a Rádio Favela. É o atual detentor do título de campeão do Duelo de MCs Nacional e um dos principais nomes do rap de improviso do Brasil. No momento, está produzindo seu primeiro EP, Causa mor, que deve ser lançado em novembro.
Kdu dos Anjos (Carlos Eduardo Costa dos Anjos), de 21 anos, é morador do Cafezal, na Região Centro-Sul. Sempre esteve envolvido com as artes, seja o teatro, música ou a poesia. Participa semanalmente do Duelo de MCs, onde já fez vários shows e disputa batalhas de freestyle com temáticas, o chamado Duelo de Conhecimento, em que é um dos principais nomes. Em 2009, foi um dos 10 vencedores do programa Vozes do Morro, com a música Contos de fada, o que tornou possível a gravação de seu primeiro clipe. Além de fazer música, Kdu é técnico em empreendedorismo formado pelo Sebrae-MG e articulador do sarau de poesia Vira Latas.
Assista aos vídeos dos artistas: