“A poesia e o poeta são inseparáveis. Não posso escrever sobre poesia sem escrever sobre o poeta. Na verdade, eu, como o poeta, sou a poesia que escrevo.” Essa reflexão de Gregory Corso, um dos principais ideólogos da chamada beat generation, bem que poderia ser estendida ao trabalho musical de Patti Smith, certamente a artista mais erudita de sua geração.
Patti Smith explodiu para o mundo em 1975 via Horses, álbum em que o simbolismo de Arthur Rimbaud, o ideário junkie de William Burroughs, estocadas sobre androginia/feminismo, visões de Jimi Hendrix, free-jazz e transgressões verbais à la Bob Dylan acabaram por conjurar a primeira obra-prima do punk rock.
Quase 40 anos depois de Horses, talvez o recém-lançado Banga já não porte o punch sufocante de outrora, mas certamente conseguiu dar continuidade ao ciclo criativo de Patti com a densidade, espontaneidade e integridade que singularizaram a obra inicial da americana. De um modo que só ela poderia enfeixar, lá comparecem reflexões sobre o cinema metafísico de Andrei Tarkovsky, os textos parassurrealistas do francês René Daumal, as alegorias satíricas de Bulgakov, literatura beat, zen-budismo, preocupações ambientalistas e ternas elegias mortuárias – tudo imantado por acordes renovados da alta sacerdotisa do rock’n’roll.
Ao retomar de forma peculiar o movimento de ruptura e de errância libertária proposta pelo movimento beat, Patti Smith fez de Banga uma espécie de road movie sônico, singrando pelo Mediterrâneo na companhia de seu fiel guitarrista Lenny Kaye e da trupe de outsiders comandada por ninguém menos que o cineasta Jean Luc Godard. Assim, a bordo do navio Costa Concordia (dois anos antes de seu fatídico naufrágio em águas italianas), enquanto fazia uma ponta em Socialisme (longa no qual o precursor da nouvelle vague vem discutir o capitalismo, o eurocentrismo e o futuro das ideologias), Smith foi paralelamente se entregando ao fluxo de consciência livre que moveu Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, Lawrence Ferlinghetti e Gary Snider enquanto punham, simbólica e literalmente, os pés na estrada.
Não por acaso, as 12 canções de Banga foram surgindo de perscrutações interiores nas quais o tempo seguiu em aleatório movimento pendular, rompendo quaisquer fronteiras que pudessem delimitar passado, presente e futuro. Entregue a esse frenético vaivém de lembranças, insights, fantasias, visões místicas e delírios, Patti Smith acaba por adentrar por ignotos labirintos – jornada excruciante da qual ela emerge calmamente desperta, radicalmente transformada e iluminada.
Faixa a faixa
» AMERIGO
Inspirada em Américo Vespúcio, navegador italiano cujo sobrenome batizou o Novo Mundo, a canção de abertura de Banga vem desfraldar as velas da viagem sônica de Patti Smith. A letra pode ser interpretada tanto como crítica ao colonialismo quanto ode à transformação interior, ao falar de que modo toda a expectativa de Vespúcio e seus companheiros em catequizar os “selvagens” da América se desvaneceu quando eles se viram “diante de pessoas tão inocentes, puras e lindas”. Por ironia do destino, acabou também servindo de epitáfio para outro “passageiro”: o baterista Louie Appel, em sua
última sessão de estúdio, pouco antes de morrer, aos 50 anos, vitimado por infarto cardíaco.
» APRYL FOOL
De acordo com o espírito “on the road” do novo álbum, a canção reflete sobre amores loucos e nômades em aclimatação musical que remete aos melhores momentos do Television – não por acaso, sua guitarra reverbera pelas mãos de Tom Verlaine, mentor daquele referencial grupo nova-iorquino. “Vamos quebrar todas as regras, incendiar todos os poemas” são as palavras de ordem de Patti, entremeadas por citações que remetem à obra do escritor e dramaturgo russo Nikolai Gogol.
» FUJI-SAN
Patti Smith compôs essa letra em homenagem às vítimas do terremoto e do subsequente tsunami que abalaram o Japão, e, em particular, a região montanhosa de Tohoku, em 11 de março de 2011. “Essa música é para todo o povo japonês. Um pedido em forma de oração, para que aquela grande montanha cubra seu povo com o manto protetor de amor”, comentou Smith. A faixacomeça com o rufar de tambores cerimoniais e avança até explodir em um rockaço daqueles
de lavar a alma.
» THIS IS THE GIRL
Emocionada pela morte da cantora Amy Whinehouse (que, por sinal, jamais conheceu), a autora compôs a elegíaca balada. “Esse é o tipo de música que eu e Tony Kaye jamais desejaríamos ter escrito”, comentou. Com modulações vocais e melodia que remetem ao doo-wop e a canções românticas da Motown dos anos 1960, essa triste faixa poderia ter sido interpretada pela própria Amy.
» BANGA
A faixa-título veio de um pequeno personagem do romance O mestre e a margarida, do russo Mikhail Bulgakov. Trata-se do cachorro de Pôncio Pilatos – animal tão fiel e cegamente dedicado que poderia esperar por algum tipo de atenção do dono por toda uma vida. Como um paradoxal mantra movido a raiva, a canção evolui trespassada por guitarras hipnóticas e vocais encharcados de bile – talvez o momento mais furioso e verdadeiramente punk do disco. Uma crítica ferina à noção de fidelidade canina e a toda forma de “salivação em troca da salvação”.
» MARIA
Em melancólica melodia bluesy rasgada por inspirado solo da guitarra slide do filho de Patti, Jackson Smith, essa outra elegia é dedicada a Maria Scheneider, que morreu em 2011, vítima de câncer cervical. Símbolo sexual nos anos 1970, a atriz é estrela do polêmico O último tango em Paris, de Bertolucci. Patti guardou dela a imagem de mulher exuberantemente rude
em sua assumida bissexualidade.
» MOSAIC
Compositor bissexto, o veterano baterista Jay Dee Daugherty extraiu os primeiros acordes de sua colaboração para Banga em um mandocello, instrumento da família do bandolim com afinação de violoncelo. O soturno tema folk-ácido traz versos que ora contrapõem ora associam o êxtase religioso ao êxtase sexual.
» TARKOVSKY
(THE SECOND STOP IS JUPITER)
Essa jazzy-jam, que Patti admite ter surrupiado de uma frase musical do afrofuturista pianista e bandleader Sun Ra, deu-lhe a oportunidade de se lançar em delirante improviso poético ao modo de seus idolatrados mestres beat. Quase levitando o ouvinte, Tarkovsky... se eleva e dissipa no ar de forma sub-reptícia, desvelando delicada aclimatação espacial. Uma espécie de aceno ao primeiro longa do cineasta russo Andrei Tarkovsky, A infância de Ivan (1932) – “o mais belo filme sobre guerra de todos os tempos”, de acordo com a compositora.
» NINE
Composta em um campo porto-riquenho como presente para Johnny Depp, de quem Patti se tornou amiga e “irmã” ao compartilhar a paixão por Jack Kerouac e pela poesia simbolista francesa. Ele filmava a cena da briga de galos do longa Diário de um jornalista bêbado. A balada sangrenta traz Depp trocando riffs de guitarra com Tom Verlaine, do Television.
» SENECA
Patti Smith, quem diria, já é avó. Vem daí esse acalanto movido a violão e cello, homenagem ao neto, Seneca Sebring. Curiosamente, a bucólica melodia remete a trabalhos mais líricos do R.E.M – grupo de rock cujo líder, Michael Stipe, admite ter sido influenciado até a medula por Patti.
» CONSTANTINE’S DREAM
Tomada por uma espécie de transe beatífico, Patti Smith se referencia em um velho cartão-postal que recebeu com a imagem do pintor renascentista Piero della Francesca, morto em 12 de outubro de 1492, para dar vazão à mais assombrosa criação de Banga. Valendo-se de versos que irrompem da garganta por associação livre, ela tece considerações acerca de um sonho apocalíptico que teve em Arezzo, na Itália, no qual São Francisco aparecia chorando. Depois de acordar assustada no meio da noite, Smith saiu a esmo pela cidade e, ao acaso, entrou em uma igreja para rezar. Quando se deu conta, estava justamente na Basílica de São Francisco de Assis, onde fica o afresco de A lenda da verdadeira cruz, cuja imagem a perturbava desde 1988, quando a viu no citado cartão-postal. O acompanhamento foi radicalmente improvisado pela banda italiana de combat-folk Casa Del Vento.
» AFTER THE GOLD RUSH
Escrita por Neil Young em 1972, a balada rural ressurge como raro momento de alento e esperança em uma gravação marcada por temas como o planeta às voltas com o caos, terminais urros beatnik, excruciantes epifanias, tenebrosas visões apocalípticas e o inevitável encontro com a morte. Como uma luz no fim do túnel, a faixa encerra o ciclo de canções do disco com a artista de volta à sua nativa Nova York, acreditando ainda na possibilidade de redenção, de um novo começo simbolizado pelas vozes de um coro infantil, de seu filho e filha, dos filhos e filhas de outros – crianças se jogando em um mundo ameaçado pela devastação ambiental com olhos e alma limpos. Prontos para encarar outros desafios, aventuras e peregrinações.