Há alguns anos, Arnaldo Antunes acalentava a ideia de fazer um disco que alternasse sambas e rocks. Queria algo original, uma conjunto capaz de revelar os atritos entre os gêneros, mas também suas afinidades. Ao longo dos últimos dois anos, compôs aqui e ali um samba e um rock que acabaram reunidos em RSTUVXZ. Ou apenas Rock Samba, abreviação usada pelo próprio compositor para falar do disco. “Eu não queria fazer uma mistura de samba e rock, que é um gênero que já existe, o samba-rock. Queria uma coisa mais ‘rock rock’, ‘samba samba’, apesar da diversidade que tem dentro dos dois”, avisa.
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As faixas foram compostas aleatoriamente, quando o músico ainda não tinha certeza da concretização do projeto. Apenas A samba, homenagem às mulheres sambistas, nasceu quando o disco já estava pronto. O artigo feminino foi proposital para um substantivo que Antunes acredita ser, também, feminino. Na letra, ele desfila vários nomes emblemáticos da história do samba e dá o tom do disco, mas a verdade só vem mesmo ao final, quando a vinheta de Curumim transporta o clima de cuíca e pandeiro para Se precavê, um rock bem ao estilo Titãs, parceria inédita com Marcelo Fromer do início dos anos 1980 tirada do baú. Com Pense duas vezes antes de esquecer, parceria com Marcelo Jeneci e gravada por ele em 2010, forma a dupla não inédita do álbum.
Na avenida
A samba é uma faixa exaltação que resume bem o encanto do compositor com o gênero. Antunes ficou impactado quando viu, pela primeira vez, uma escola de samba entrar na avenida. Era diferente de assistir ao espetáculo na televisão. “A sensação daquilo chegando, pra mim, era rock´n roll”, lembra. “Então, quando digo que, no fundo, samba e rock é a mesma coisa, falo da energia que aquilo desperta.” Pensando assim, ele acredita, fica fácil transitar com liberdade entre os dois gêneros e fazer seu samba com pitadas de guitarra e sintetizadores. “Acaba ficando uma afinidade orgânica, mais que conceitual”, garante.
Se precavê, sobre um homem que só quer segurança e só faz o que pensa, envelheceu bem. Com mais de 30 anos, é de uma atualidade que faz Antunes pensar no Brasil de hoje. “É uma música muito atual. Principalmente quando muitas pessoas vêm falando nessa questão da segurança. É um discurso que a direita assumiu, essa coisa de tratar a questão da segurança como a grande prioridade, combatendo a criminalidade com polícia apenas, enquanto os governos e os políticos teriam que priorizar a educação. Só que o fruto disso só vai aparecer na geração seguinte e eles querem sempre aquele resultado imediatista para poder se reeleger”, repara.
Entre as participações especiais estão também os filhos do músico, Celeste e Brás, este último parceiro de composição entre Quero ver você. O samba feito a dois, em família, tem violão, mas também sons eletrônicos para embalar uma narrativa sobre confiança, timidez e, novamente, segurança. “A família acabou entrando de um jeito muito natural. A Celeste, eu convidei porque é minha filha e tem gostado de cantar, canta superbem e é muito dedicada”, conta o músico. “Essa coisa dos afetos estão no disco e também nos músicos que tocam comigo, que se tornam muito amigos também.”
Temas contemporâneos, as redes sociais e as fake news aparecem no samba engraçadinho Também pede bis e o envelhecimento está na concretista Medo de ser, uma sacada bem arnaldiana que enumera verbos terminados em cer para correlacioná-los com ser. Aos 57 anos, depois de 14 discos solos, pai de quatro filhos e agora no terceiro casamento (com a artista plástica Márcia Xavier, que assina a capa do disco e está na última faixa, Orvalhinho do mar), Arnaldo Antunes tem sim medo de envelhecer, coisa que ele combate com caneta, papel e sons. “Fazendo música. Como essa. Me expressando”, avisa.
3 perguntas // Arnaldo Antunes
Unir samba e rock também é falar sobre diferenças?
É um disco que afirma essa questão da riqueza, da diversidade, da convivência, das diferenças. E a riqueza disso. Naturalmente, não foi concebido assim, foi uma coisa que pensei depois. Fala da intolerância que a gente tem vivido no Brasil e no mundo. Viemos de um certo otimismo, há duas ou três décadas, com a proliferação dos meios digitais, da internet. O mundo parecia que teria um perfil mais tolerante depois da queda do muro de Berlim. E o que a gente vê é o crescimento da intolerância. Você tem informações do mundo todo, mas as pessoas estão cada vez mais fechadas em guetos, em partidos, em países com fronteiras, com muros. E o Brasil foi muito contaminado por esse tipo de intolerância depois do golpe. Depois que você faz um atentado à democracia, você acaba pagando um preço que repercute, várias forças começam a se manifestar e a gente tem vivido isso. Esse governo Temer é um governo de retrocesso, de aparição de saudosos da ditadura, uma coisa horrorosa.
Muitos que defendem intervenção militar defendem também seus métodos, incluindo tortura, falta de liberdade de expressão e supressão das instituições democráticas. Diante disso, ainda há algo a ser ensinado?
Acho que tem muito o que ensinar sim. Tem muita ignorância e desconhecimento sobre o que foi aquele período. Acho que as pessoas que defendem isso não sabem o que foi e não aprenderam história. Não acredito que seja uma afirmação de “ah, tem que torturar mesmo, tem que matar mesmo”. Acho que é uma coisa de não saber o cerceamento da liberdade que foi ou o horror que teve no período militar, a corrupção toda que também teve.
Também pede bis fala de mensagens e fake news. São temas inevitáveis?
Ah, a gente tá convivendo com isso todo dia. Acho inevitável que entre nas músicas. A música, o poema, a criação artística não são impermeáveis a nada. Tudo que está sendo vivido acaba podendo entrar em uma canção.
RSTUVXZ
De Arnaldo Antunes. 13 faixas. Rosa Celeste. R$ 24,90