Escolha de Cauã Reymond para interpretar uma travesti em clipe levanta debate sobre o olhar

Questão mostra que é preciso falar sobre representatividade trans na mídia cultural

por Correio Braziliense 27/06/2016 10:05

Reprodução/Youtube
(foto: Reprodução/Youtube)
 

Embora seja reconhecida pela crítica e por um público fiel, a cantora Barbara Ohana ainda não goza de prestígio nacional entre os nomes atuais da música brasileira, pelo menos no que se refere à popularidade. No entanto, desde o recente lançamento do clipe da canção Your armies, que traz o ator Cauã Reymond travestido como mulher, o quadro começou a mudar.

A faixa agradou, mas a escolha do artista gerou uma polêmica intensa pelas redes sociais. O burburinho, de alguma maneira, favoreceu Barbara, que, pela primeira vez, teve um clipe ultrapassando 1 milhão de visualizações. Uma marca até então impensável para a cantora. Mas e o movimento trans, supostamente representado por Cauã? Como se sai nessa história?

Imediatamente após a divulgação do clipe, ativistas, blogueiras e militantes da comunidade trans se posicionaram negativamente. O problema: por que não escolher uma artista trans para o papel? Por que insistir em convocar um homem cisgênero (aquelas pessoas cujo gênero é o mesmo que o designado no nascimento) para interpretar uma figura trans? A discussão provocada foi similar à controvérsia envolvendo o filme A garota dinamarquesa, que conta a história de Lili Elbe, que nasceu Einar Mogens e se submeteu à primeira cirurgia de redesignação sexual no mundo. Mais uma vez, a garota foi interpretada por um ator cis heterossexual.

Sem justificativas


“Foi-se o tempo em que as transexuais estavam presas à marginalidade. Hoje, temos meninas nas universidades, em empregos formais, no cotidiano social, na indústria cultural. Temos atrizes competentes e talentosas. Não há justificativa para a escolha de um ator cis para representar uma trans”, critica a servidora pública Bianca Moura, de 47 anos, que há mais de duas décadas assumiu uma nova identidade social e largou para trás a vida que foi obrigada a levar por conta da designação masculina, imposta ao nascer. “Nem me lembro dessa vida regressa. Só me importo com o que aconteceu depois que passei a me identificar como mulher”, diz.

Bianca não endossa o argumento de que a escalação de Cauã Reymond e Eddie Redmayne (A garota dinamarquesa) gere maior visibilidade ao movimento e, consequentemente, amplie o debate. Pelo contrário: “Vemos tantas atrizes e atores que não são conhecidos, mas que acabam sendo premiados, ganhando repercussão, por conta da competência no trabalho. E esses atores e atrizes podem ser trans, por que não?”, defende a servidora, que integra a organização ANAVTrans (Associação do Núcleo de Apoio e Valorização da Vida de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Distrito Federal e Entorno).

“Ninguém dirá quem a gente, de fato, é. Um ator cis, hétero, jamais vai compreender o que está por trás da realidade trans. Perde-se, na verdade, uma oportunidade de se aprofundar essa representação. De buscar alguém que realmente entenda o cotidiano de uma transexual. Temos que mudar esse histórico”, completa.

Ao elencar nomes que possam verdadeiramente representar “as meninas trans”, Bianca ignora todos as figuras midiáticas, como a atriz e apresentadora Rogéria ou a modelo Lea T: “Elas estão muito mais preocupadas com a própria história. Prefiro a Keila Simpson, presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) ou a professora Jaqueline de Jesus, que eleva nosso nome no meio acadêmico”. Acima de tudo, Bianca aprova o discurso daquelas que optam pela coletividade: “Muito mais do que na beleza, nos espelhamos em personalidades de garra e inteligência. Respeito as trans que tomam as ruas, que acendem vela na frente do Congresso, que entram em um ônibus lá no Piauí para participar de uma manifestação em Brasília. Essas nos representam”.

“Eu viso transformações. Viso mudanças. Viso uma utopia. E a maior transformação, mudança e utopia que qualquer mulher trans e travesti deseja é poder falar na primeira pessoa”
Maria Clara Araújo dos Passos, blogueira, pesquisadora e ativista, em sua página pessoal do Facebook

1,2 milhão

Visualizações do clipe Your armies, de Barbara Ohana

1882
Ano de nascimento de Lili Elbe, que inspirou A garota dinamarquesa

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